Saturday, April 21, 2007

TEMPORARIAMENTE ENCERRADO



O blog PROUDHONIANA encontra-se temporariamente encerrado.
Por motivos de agenda.
É claro que dentro da designação "motivos de agenda" tudo pode caber...
Para breve uma explicação merecida.
Para breve uma decisão final.



Sábado, 21 de Abril de 2007
Francisco Trindade

Friday, April 20, 2007

PROUDHON: SOBRE A EDUCAÇÃO

1. Introdução à questão
Sublinharíamos que a noção de “educação progressiva” está no centro de tudo o que, no pensamento proudhoniano, diz respeito ás estreitas ligações entre o desempenho individual e a reforma social. Quando o nosso autor trata da igualdade, do trabalho ou da democracia, é sempre de educação que ele fala. Além desta concepção abrangente, Proudhon tinha também pontos de vista originais sobre a escola e a formação profissional. Pode-se dizer sem excessos que para ele a educação, sob os seus diferentes aspectos, é por vezes o fim e os meios da Revolução.Agitando-se na sua própria conduta e daquela que ele recomenda, não deixou de considerar-se como um estudante perpétuo, a sede do conhecimento era para ele primordial e permanente: “Toda a vida do homem é uma aprendizagem” ( Carnets, 2-84 ). É somente neste sentido que lhe pode atribuir-se de forma positiva o epíteto de “autodidacta”, portanto o termo nele foi frequentemente juntado em má parte. Tanto como, professando que o conhecimento é efémero se ele não é partilhado, ele reivindica como congenital a sua vocação de ensinamento: “É um ensinamento que eu quis fazer, um ensinamento de palavra e de exemplo” ( Carnets, 3-89 ). Aprender sem parar, tendo como objectivo transmitir o seu saber aos demais desarmados afim de torná-los aptos para transformar o mundo, tal é a conversa daquele que nunca renegou as Lumières.Este duplo apelo está desde já proclamado, com uma sonante consciência sua, na célebre carta de candidatura à Pension Suard, que vai determinar o futuro do jovem operário tipógrafo. Mais particularmente no parágrafo final que um conselho prudente fá-lo-á acalmar:“Nascido e criado na classe operária, surgem-lhe ainda, hoje em dia e sempre, no coração, o génio, os hábitos e sobretudo a comunidade dos interesses e dos desejos, a grande alegria do candidato, se ele reunisse os vossos sufrágios, se ria (…) ter sido julgado digno de ser o primeiro representante junto de vós; e de poder muito trabalhar sem descanso, para a filosofia e ciência, com toda a energia da sua vontade e todos os poderes do seu espírito, a libertação completa dos seus irmãos e companheiros.” ( a Ackermann, de 13 de Junho 1838, Cor., I-52 ).Cada um dos instantes do escritor permanecerá fiel a este empenho. É a partir dele que ele praticará as suas três actividades mais ou menos confusas do investigador, do autor e do jornalista. Á parte, uma breve passagem - por outro lado, pouco convincente! - à Assembleia nacional de 48, Proudhon não fará nunca outra: a educação do povo ocupou-a sem descanso e exclusivamente.Portanto, ensinado por gosto e ensinando por dever, enfraquecendo-se ao reunir como a transmitir uma informação sem ser aprofundada e corrigida, colocando todas as suas esperanças no melhoramento dos homens por uma educação a que nós chamaríamos hoje “permanente”, Proudhon não consagrará na totalidade algumas das suas inúmeras obras à educação. É um paradoxo que poderia bem ser revelador.Ele pode, ainda que nada ao nosso conhecimento o prove, que entre o crescimento dos projectos nos quais Carnets conservam a marca, um semelhante trabalho tinha sido considerado. Em Fevereiro de 1847 figura sob a rubrica “Programa”, uma “Crítica de ensinamento e dos sistemas propostos” ( Carnets, 4-94 ). A meio de Maio do mesmo ano, Proudhon regressa sobre um assunto que evidentemente preocupa-o, com um catálogo mais detalhado em pontos a abordar: “Questões de ensino, aprendizagem, etc., etc. Reforma universitária: reforma do Instituto, Organização das bibliotecas; disciplina das escolas superiores” ( Carnets, 5-6 ). Contudo o objecto destas ajudas-memória não é preciso. Ele agita-se num livro, ou de uma parte do livro? A menos que isto não faça o esboço de um dos programas nos quais aquele que se queria “construtor” depois de ter demolido, acumulava os materiais nestes anos onde, desde já, se podia aperceber os signos mensageiros dos acontecimentos próximos? Nós nunca o saberemos.O facto é que, sobre a questão que nos ocupa, nada verá tão depressa o dia. Se excluirmos as anotações sugestivas mas breves reencontradas desde os seus primeiros escritos e em seguida, Proudhon não tratará de um dos assuntos que ele tem como essenciais antes do seu grande livro A Justiça, ou seja, no último período da sua vida. Ele fará ainda uma maneira que se pode estimar senão alusiva, ao menos bastante sumária para responder inteiramente à tentativa que o seu público tinha, tal como nós próprios.Seguros que o “Programa de filosofia popular” inscreve, a partir da segunda edição, em função da mais ambiciosa das suas obras, constitui para ele um único manifesto a favor de uma educação descansando sobre outros princípios do que sobre aqueles onde a burguesia elitista estabeleceu o seu poder. É preciso ler este texto não somente como tal, mas sobretudo tendo no espírito o que eram o lugar da filosofia e a forma na qual ela ensinava naquela época ( sem falar naquilo que elas se tornaram ) para aí aperceber uma acentuação profundamente revolucionária. Tomados pelo sério, a exigência que lá é formulada supõe efectivamente uma concepção e uma prática universalista da cultura nas quais as nossas sociedades ditas “avançadas” são ainda fortemente remotas.Todavia este discurso, por mais significativo que ele seja do fundo do pensamento proudhoniano sobre a educação, talvez tido na sua carta como preliminares sobretudo um exposto completo sobra a educação. É o 5º estudo da mesma obra, que contém justamente este título, que é preciso reportar-se ( II tomo da edição Rivière ) para encontrar a esperança de ver o assunto enfim tratado.Enfim! Apesar da riqueza deste capítulo, tanto sob os ângulos biográfico e literário que tratava as ideias, permanecemos ainda sobre o nosso desejo. As digressões e uma polémica com a Igreja, um pouco obsessiva parecem fazer-nos perder pouco do que está em causa. Mesmo se todos estes aspectos estivessem para o autor estreitamente ligados, é preciso ler nas entrelinhas para discernir o longo comentário do “Pater” ou nas páginas sobre a morte - por mais admiráveis que elas sejam - um programa educativo. Menos ainda a maneira de o aplicar.A resposta encontra-se acima de tudo no 6º estudo, que depois do seu título conduz “O Trabalho” ( III tomo da edição Rivière ). É efectivamente lá que o autor expõe com alguns detalhes a sua concepção bastante pessoal da educação pelo trabalho, fundando-a sobre o axioma iminente proudhoniano: “A ideia, com as suas categorias, nasce da acção e deve retornar à acção” (Justiça, III-69 ). Os mesmos pontos de vista serão retomados, e sobre alguns pontos desenvolvidos, nas várias passagens importantes da Capacidade política das classes operárias.Assim, além das derivas que conduzem o seu impulso à escritura, nós apercebemo-nos que o sentido englobante dado por Proudhon ao conceito de “educação” leva-o a tratar tudo como um especialista, menos ainda como um técnico. O de libertar-se dos determinismos da natureza como dos da sociedade.No fundo, se Proudhon, mais que alguém persuadido pela importância essencial da educação, tem no total escrito pouco sobre o assunto, e em todo o caso nunca lhe foi consagrado um exposto sistemático, é porque provavelmente ela é para si neste ponto fulcral importante, não sabendo tratá-la de uma forma isolada. Ela aplica-se a tudo o que diz respeito ao desenvolvimento humano, individual e social, é uma dimensão de todas as questões que coloca o futuro do homem e dos progressos que ele é capaz de juntar.É isto que exprime esta declaração, no início e para assim no preâmbulo do estudo da Justiça evocada mais alto, que tem justamente como característica não isolar o tema educativo de cada um dos outros. Pelo contrário, ela insere-a no conjunto dos pontos de vista proudhonianos, para formar o objectivo final e o movimento a que pode conduzir:“A educação […] constitui uma arte, a mais difícil de todas as artes; uma ciência, a mais complicada de todas as ciências, já que ela consiste em informar as mesmas verdades dos espíritos que não são semelhantes; a ter os mesmos deveres dos corações que não se abrem do mesmo lado da Justiça. A educação é a função mais importante da sociedade, aquela que tem ocupado mais as legislativas e o judicioso” ( Justiça, II, 333-336 ).Não saberia portanto de admirar que o condensado do pensamento do nosso autor a este respeito, tinha tomado um lugar de destaque na ambiciosa obra onde Proudhon da maturidade quis juntar o conjunto do seu método, da sua moral e da sua filosofia social. Dando acima de tudo confiança às capacidades propriamente indefinidas da razão humana, o reformador afirma que apesar dos acolhimentos provisórios e mesmo da eventualidade - que o assusta - de um insucesso final, inscrito na própria liberdade, a virtude e o direito triunfarão. A Justiça, que é a plenitude do humano, impor-se-à. Ou então tudo se perderá.Educar, educar sem trégua nem descanso, é a única forma de fazer emergir progressivamente esta ideia soberana da Justiça, para que ela se realize um dia senão na sua plenitude, ao menos com a aproximação mais parecida. É assim que o que é sempre tido por um observador e um analista das realidades, não excluem mesmo a hipótese pior, revela afinal de contas um optimista profundo, portanto activo.O combate não parará nunca, porque a liberdade e a igualdade não são “naturais” mas adquiridas. Ou sobretudo conquistas para serem partilhadas. A humanidade será no futuro, mais progresso onde ela é capaz de só obter o concurso com todos os seus membros. “Democracia” é demopedia, educação do povo”, repete Proudhon ( Carnets, 5-12-51 e Cor. IV-217 ). Contudo, o homem está só face a ultrapassar a sua animalidade pela razão, ele é também indefinidamente perceptível. É preciso, portanto apostar sobre esta capacidade de evolução. Ela só pode conduzir a este respeito dos outros que não é definitivo que o amor consequente de si mesmo. Educação do povo e revolução autêntica são sinónimos. Ainda falta demonstrá-lo.Proposição de um “Corpo”As referências são dadas pela edição Rivière, para todas as obras que lá figurem. As outras edições para as quais ele é reenviado, são indicadas entre parênteses do título.Carta de candidatura à Pensão Suard (1838), reproduzida O que é a Propriedade?, pp. 9-16 e na Correspondência, I-24-33.Segunda Memória, Advertência aos proprietários, (1842), pp. 198, 202-203.Da Criação da Ordem na humanidade (1843), pp. 337, 409-412, 426, 442-443, 449-453.Sistema das contradições económicas ou Filosofia da Miséria (1846), II tomo, pp. 262-263.O Direito ao trabalho e o Direito de propriedade (1848), publicado antes da Segunda Memória ( v. em baixo ), pp. 433-436, 448.Ideia geral da Revolução no século XIX (1851), pp. 113, 140, 326-328.A Justiça na Revolução e na Igreja (1858, 2ª edição, 1860), “Programa de filosofia popular”, I. pp. 187-284, em particular pp. 199 sq., 230-231. II ( 5º estudo ), pp. 327, sq., particularmente pp. 381, 387-388, 449, 458-460; III. pp. 86-88 ( a aprendizagem ), 92-93, 103.Do Príncipio federativo (1863), p. 328.Da Capacidade política das Classes operárias (1865, póstumo), pp. 214, 334-345, 414.Cruzamento ( Ed.Lacroix, 1868 ), III. p. 170.Correspondência ( Ed. Lacroix, 1875 ), III, p. 286; IV, p. 222; V pp.88, 300; VI, p. 74, 92; VII, p. 7, 122, 124, 306; VIII, p. 320, 324, 331; XI, p. 14, 330; XIV, p. 307.Carnets ( Edição Haubtmann-Rivière, 4 vol. 1960-1974 ), I. pp. 17, 29, 85, 92; II. pp. 13 ,27, 30-31, 50, 66, 67, 77, 83, 84, 125, 127, 149, 152; III. pp. 67, 78, 89; IV. pp. 10, 16, 20, 36, 72, 94, 138, 139, 160, 169, 170, 183; V. pp. 6, 7, 14, 23, 72, 79, 93, 114, 137, 187, 193, 213, 214, 272-273, 308; VII. pp. 96, 183; VIII. p. 203.EstudosBerthod, Aimé, “A Filosofia do Trabalho e da Escola”, in Proudhon e o nosso tempo, Chiron, 1920.Duveau, Georges, O Pensamento operário sobre a Educação, Domat, 1948, p. 145-159.

Wednesday, April 18, 2007

PROUDHON E A EUROPA


É a partir de uma longa reflexão sobre a questão das nacionalidades tão delicada do seu tempo e desde já temível, que Proudhon veio à Europa.
Desde a época dos seus primeiros escritos, desde então as suas reflexões sobre a propriedade parecem monopolizá-lo, ele confia a um amigo o seu desejo de compreender, desde que ele o possa, suas procuras para o bem de outros assuntos, entre os quais ele inscreve “a psicologia das nações” (Carta a Micaud, de 18 julho 1841). Suas obras posteriores não transmitem vestígio mas pode-se acreditar que a sua curiosidade universal registaria desde já, quase sem ele saber, as observações que transportarão muito mais tarde os seus frutos.
Em 1848, ele cede – com uma exaltação com a qual ele se denunciará, não sem excesso de outro modo, por consequência – ao admirável ambiente pela causa da liberação dos povos. Como, efectivamente, o seu sentido profundo das autonomias, o seu culto pela liberdade e pela justiça, não teriam eles arrastado àquele entusiasmo aos olhos do grande impulso que parecia erguer a Europa contra as opressões seculares? O movimento ganha admiravelmente, escreve ele. Diz-se que a Bélgica está constituída numa república (…). Com a Bélgica, a Suíça, a Itália em breve, existirá uma federação de repúblicas bem grandiosa para pronunciar a guerra estrangeira quase impossível” (Carta a Maurice, de 26 Fevereiro 1848). E, na carta seguinte, ele argumenta o seu pensamento; “Como eu vos dizia, a confederação das repúblicas europeias forma-se e nós não teremos diante de nós a questão social. É certo.” (no mesmo 21 Março).
Primeira intuição do federalismo… Mas, tudo imediatamente, primeiras reticências de um espírito nunca descansado e social de não deixar tomar o passo ao sentimento sobre a razão. Porque, a lufada de emoção apagada. Proudhon empreende a análise do príncipio nacionalitário e ele discerne depressa os equívocos. Sob a mentirosa aparência dos significados, escondem--se com efeito duas realidades fortes diferentes e praticamente contraditórias. De uma parte a reivindicação pelas comunidades oprimidas do direito de se governar livremente e de estabelecer relações com quem elas entendem; mas, por outro, a afirmação que existe nas afinidades “naturais” entre tantos e tantos grupos separados pela história e, consequentemente, a reivindicação por estes grupos de um Estado unitário que assemelhava-se contra todos os outros.
Entre a aspiração produtiva à “autodeterminação” e a vertigem da fusão, entre a dignidade colectiva e a vontade de poder, é difícil de fazer a partilha agradável de prever o que lhe arrebatará. Proudhon reconheceu, sob a sua máscara democrática, a última transformação do inimigo de sempre, que se chama César ou Napoleão, monarca absoluto ou povo soberano. Governo por governo, opressão por opressão, mais valiam então as velhas monarquias que não iludem ninguém. Enquanto “o que chamamos hoje em dia restauração da Polónia, da Itália, da Húngria, da Irlanda (…) é a ilimitação monárquica com aproveitamento da ambição democrática; isso não é a liberdade, menos ainda o progresso” (Justiça, II, p.289).


A CENTRALIZAÇÃO, EIS O INIMIGO

As existentes pretendidas “realidades” sobre as quais se baseam a aspiração unitária só existem na imaginação simplificadora daqueles que leêm a história ao contrário. A verdade é que ele não existe mais, desde os milénios, de povo homogénio da Europa. Proudhon não parece ter conhecido os pontos de vista racistas de Gobineau, do qual sai o sucesso que elas deviam reencontrar na Alemanha. Mas pode-se pensar que ele próprio não inventou o necessário para os refutar, tanto que elas iam ás vezes contra a evidência dos feitos e contra a base do seu pensamento.
Quanto ás pretendidas “fronteiras naturais” das quais os teóricos nacionalistas faziam uso moderado, ele tem-nas estudadas de muito perto, empreendendo ao assunto vastas leituras que o deviam conduzir aos pontos de vista originais e, de boas maneiras, avançando sobre o seu tempo; ele também tinha sido sedentário, ele estenderá, antes de deixar a Bélgica, ao fazer uma viagem ao longo do Reno unicamente para completar, sobre o terreno, suas procuras. As suas conclusões, se ele tem necessidade, confirmam-se: por toda a parte os limites arbitrários entre Estados não só se dividem mas, pelo contrário, atravessam regiões de povoamento por partes muito semelhantes. É, diz Proudhon, que os agrupamentos humanos são originariamente fixados seja, como aqui, seguindo-se a passagem dos grandes rios, seja algures a partir dos desfiladeiros da montanha. É por isso que os grandes conjuntos “produto da política mais ainda do que da natureza” que pretendem ocultar-se nos altos muros da soberania – como os proprietários atribuem um direito absoluto sobre uma parcela do solo comum – longe de ligar entre elas as afinidades separadas, decidem pelo contrário no tecido vivo das comunidades humanas. Estas centralizações ditas nacionais, e que são na realidade estáticas, esforçam-se de provocar o entusiamo para uma liberação abstracta desde que elas representem frequentemente, como na Polónia, o último sobressalto das grandes feudalidades; em todo o caso, elas não se podem estabelecer mais suprimindo o que substia ainda das liberdades locais e pessoais:
“O primeiro efeito da centralização, não se move aqui de outra maneira, é de fazer desaparecer, nas diversas localidades de um país, toda a espécie de carácter indígena; enquanto se imagina por este meio exaltar na massa da vida política, destrói-se as suas partes constitutivas e até aos seus elementos. Um Estado com 26 milhões de almas, como seria a Itália, é um Estado no qual todas as liberdades provinciais e municipais são confiscadas com o objectivo do lucro de um poder superior, que é o governo. Lá, toda a localidade deve calar-se, o bairrismo silencioso: fora o dia das eleições, no qual o cidadão manifesta a sua soberania por um nome próprio escrito sobre um bolhetim, a colectividade é absorvida pelo poder central(…). A fusão, numa palavra isto é, o aniquilamento das nacionalidades particulares, onde vivem e se distinguem os cidadãos, numa nacionalidade abstracta na qual não se respira nem se conhece mais: eis a unidade” (A Federação e a Unidade na Itália), pp.98-99).
E que não se venha prometer, com uma inacreditável ligeireza, como o fazem Mazzini e seus amigos nacionalistas europeus, que depois de ter fragmentado as continuidades naturais para as recompor em grandes conjuntos nacionais nos quais o orgulho é o único fundamento, obter-se-à das suas nações que elas abdiquem uma vez das suas prerrogativas, para se assemelhar pacificamente sob a bandeira de alguma repíblica europeia! A Europa dos Estados é um mito, bem como a Europa unitária. Ou ela se dissolveria na incapacidade, pela regra da unanimidade; ou ela aboleria, seguindo a lógica centralizadora, a hegemonia de um super-Estado que seria ainda mais opressor que os outros, se não fosse impossível:”…ele não é a santa aliança, congresso democrático anfictiónico, comité central europeu, que lá pode qualquer coisa.
Depois dos grandes corpos assim construídos há necessariamente interesses opostos: como eles não se querem fundir, eles não podem mais reconhecer a Justiça: pela guerra ou pela diplomacia, não menos imoral, não menos funesta que a guerra, é preciso que eles lutem e que eles se combatam (…); é isto que explica porquê a monarquia nunca pôde representar-se universalmente. A monarquia universal é na política o que a quadratura do círculo ou o movimento perpétuo é na matemática, uma contradição (…); se o poder é exterior à nação, ela sente-o como uma injúria; a revolta está em todos os corações: a instituição não pode durar” (Ideia Geral, pp.333-334).
A Europa de Proudhon está também afastada das mensagens parlamentares que das iluminações dos místicos. Isto não é nem uma combinação diplomática nem uma entidade puramente verbal mas uma realidade política, económica, social – numa só palavra humana – que tem o seu passado, o seu presente e, por conseguinte, o seu futuro. Ele entende-a como um todo harmonioso, uma “união” (Carta a Chandey, 11 Abril 1859) que descança sobre uma civilização comum e, sobretudo, sobre um estado de direito, ou seja um ajustamento reciprocamente garantido das forças e uma identidade dos príncipios.

CONTRA A RUÍNA DA EUROPA

É porque, Proudhon o revolucionário (mas ele sempre disse que ele entendia este desenrolar como aquele de uma artífice da ordem) está tão firmemente partidário dos tratados de 1815, no grande escândalo dos republicanos e dos autocrátas que uniam-se para os denunciar. Estes tratados não fizeram, aos seus olhos, mais do que coroar um século de esforços modestos, mas produtivos, para estabelecer um equílibrio europeu sobre as ruínas do velho sonho unitário da cristandade. Ora ele está sempre sujeito a modificar uma ordem, a menos que não esteja à vista de uma ordem superior. O equílibrio é a forma prática da justiça e a justiça não se faz com as palavras, menos ainda com preferências sentimentais. Aqueles que afirmam que os tratados de 1815 ”deixaram de existir” não propõem, para os substituir, mais que um estado de desiquílibrio e de conflito permanente.
Os tratados de 1815 são “o esboço da constituição da Europa” (Da Justiça, II, p.315); se eles não foram aplicados “a verdadeira táctica para os amigos da liberdade, era recordar sem parar os soberanos ao espírito e ao respeito dos tratados”, “porque há sempre mais a perder do que livrar-se de uma lei necessária, a respeitá-la na sua aplicação, mesmo na mais imperfeita. Ora, entre populações aglomeradas, como aquelas da Europa moderna, um direito das pessoas, uma legislação internacional é necessária, já que as relações não podem ser quebradas …”. “Mas, se a Itália chegar a fundar a sua unidade, as condições do equílibrio são mudadas pela Europa. No estado de guerra onde ele é forçada a se conter, ele não chega mais à França da anexação de Nice e de Savoie (…) é necessário um suplemento se compensações. A unidade na Itália significa a França no Reno, desde Bale até Dordrecht. Porque se os tratados não garantem mais que o equílibrio, ele refere-se a si mesmo, e nenhum poder o saberia impedir. O equílibrio é a própria justiça: é o direito das pessoas, apesar das fronteiras naturais e das nacionalidades. Uma vez começado, o movimento compensatório não se prende mais (…). “Assim, no pensamento superior de 1815, os dois grandes príncipios do equílibrio dos poderes e da instituição das garantias constitucionais estavam ligados um ao outro e solidários: atentar contra este, era comprometer aquele; ameaçar uma nação nas suas liberdades, era fomentar a guerra universal” (Ibidem, pp.316, 317, 320, 321).
E, quanto mais a folia política das unidades enganadoras e do autêntico imperialismo se persegue, mais claramente aparece a Proudhon o que serão as suas trágicas consequências: a guerra entre Estados europeus ou a guerra civil europeia. Ele tem, para as denunciar, os acentos proféticos; mas, não nos iludimos, esta visão exacta do futuro não é somente o feito de uma angústia. Ela só deriva da apreciação lúcida dos efeitos directos e das consequências longínquas de uma falsa filosofia da história: “A velha Europa precipita-se contra a ruína; (…). Nós marcharemos para uma formação de cinco a seis grandes impérios tendo todos como objectivo defender e restaurar o direito divino e de explorar a cidade plebeia. Os pequenos Estados são sacrificados à partida (…). Então, não existirá na Europa nem direitos, nem liberdades, nem príncipios, nem costumes. Então também começará a Grande Guerra dos seis grandes Impérios uns contra os outros (…). A Europa culpada será castigada pela Europa armada. (…) Por toda a parte, eu vejo as guerras nacionais, não as guerras políticas da origem” (Correspondência X, 3 Maio 1860, pp.38-39 e 3 Maio 1860, p.47). Eis o estado da Europa, esquartejada entre as suas contradições sociais e políticas, atormentada entre “o príncipio da nacionalidade, o mesmo das fronteiras naturais, o direito dinástico, o direito feudal, as constituições, as autonomias… bem misturadas, confusas “que só os canhões, a última conta directiva, poderão decidir nesta inexplicável confusão. A Europa procura a sua unidade sem querer, nem poder, renunciar às suas diversidades. Um príncipio de ordem, mais inspirado na astúcia do que na sabedoria, apareceu lá; o funesto fermento da nacionalidade, inventado pela França revolucionária tanto quanto imperial, e comunicado por ela a todos os seus vizinhos, está em vias de o destruír. A Europa quer viver, mas ela ainda não existe. O empirismo, o provisório e os mais temíveis equívocos mantem-na à beira do abismo: “A Alemanha procura a sua federação: doença do mundo, se ela vier a tombar na rotina unitária! A Prússia debate-se entre a sua democracia e a sua dinastia; (…) A Itália prejudica-se da reunião das suas provincias; a Bélgica, com o objectivo do parlamentarismo, maldito clerical e liberal, e revolta-se contra as suas velhas instituições comunitárias; (…) a Inglaterra parece estar bem, tanto mais que ela explora o mundo: mas mudem a sua condiçâo económica; e ela cai na combustão: quanto a nós; franceses; mais avançados que os outros; estamos em plena dissolução” (Contradições Políticas, pp. 145,146,149).

A REVOLUÇÃO DO DIREITO

Face a estas confusões, sucessivamente cínicas e humanitárias, que preparam os despertares sangrentos, Proudhon, fiél ao seu método, esforça-se para remontar aos príncipios e de colocar as questões em termos simples e rigorosos, mas não rígidos nem simplistas.
Do que é que ele se agita? As fronteiras, os Estados, todas as futilidades nacionalistas, não são, o melhor dos meios. A própria Europa não é um fim em si. São os homens que contam. Só a justiça e a liberdade, seu corolário, podem ser procuradas como objectivo.
Quer-se realmente o progresso, a elevação de uma ordem mais equitativa, e não, sob diferentes palavras, a eterna escravatura? Preocupemo-nos então com o que lá se conduz, no lugar de se estimular para o afastar. Criar novos Estados, com novas bandeiras, não mudará nada os privilégios de classe ao interior destes Estados. Convencer as nacionalidades que elas são oprimidas para fazer dos opressores, não suprimerá a exploração do homem pelo homem. Que as dinastias hesitantes e as aventuras incertas não se preocupam com estas contradições, é normal. Mas que republicanos, democratas, ou chamado, não veêm a cilada, o que será desesperante, se, desde há muito tempo, a vida destes demagogos não fosse revelada. O movimento das nacionalidades pretende-se revolucionário mas, na realidade, aqueles que o dirigem não fazem mais do que enganar os povos iludindo as suas verdadeiras esperanças. Aqueles homens não querem a revolução, eles têm pena; eles só procuram instalar a antiga desordem num novo caderno que os favorecem. Proudhon depressa fez desembocar nos mais entusiastas nacionalistas um novo alibi do incorrigível reformismo:
“Aqueles que falam tanto de restaurar as suas unidades nacionais teêm pouco gosto pelas liberdades individuais. O nacionalismo é o pretexto do qual eles se servem para evitar a revolução económica. Eles fingem não ver que é a política que fez cair na tutela as nações que eles pretendem hoje em dia emancipar. Porquê recomeçar estas nações, sob a bandeira da razão do Estado, uma prova alcançada?”(Da Justiça,II,p.289).
Se se atingia aquilo que é, segundo a análise de Proudhon, a primeira e a principal questão - a da propriedade - a solução do irritante problema das nacionalidades será fornecer como por acréscimo:”Deêm aos povos as liberdades que eles reclamam; executem, ó príncipes, segundo o seu verdadeiro espírito, os tratados de 1815; façam ainda melhor, preparem a definição do direito económico, e avisem-me que vós não entenderam apenas falar das nacionalidades e das fronteiras naturais” (Da Justiça,II,p.323). “ Ele é, com efeito, da económia política como das outras ciências, ela é fatalmente a mesma por toda a terra(…) cujo governo tornou-se inútil, todas as legislações do universo estão de acordo. Não existe mais nacionalidade, mais pátria no sentido político da palavra. Não há mais lugares de nascimento” (Ideia geral,pp.328-329); “a compenetração livre e universal das raças sob a lei única do contrato, eis a revolução” (ibidem,p.232). A Europa unida, o mundo unido, e o direito, não são mais que uma mesma realidade.

A AUTONOMIA, FUNDAMENTO DA EUROPA

Tal é a hipótese mais geral que Proudhon fixou nas suas pesquisas. Mas ela não forma o projecto, nem o termo. Se ele nunca a recusou, ele não deixou de se inclinar atentivamente sobre as estruturas que poderão dar-lhe vida; e ele tem pouca dúvida que, se o tempo o tivesse deixado, ele teria impelido ainda as suas proposições concretas. Da anarquia universal ao federalismo europeu ou, mais exactamente, contra a anarquia pelo federalismo; é a fórmula que parece resumir melhor o último estado do pensamento proudhoniano.
Porque Proudhon não é de modo algum, como o pretendiam os adversários sem grande informação e sobretudo sem boa fé, um defensor de imobilismo, um revolucionário”pequeno burguês” que, finalmente, se reune na desordem estabelecida. A menos que o realismo não seja uma qualidade especificamente da (pequena) burguesia! E por outro modo, ele respondeu “ chamem-me como desejarem: eu não me aborreço nada” (Se os tratados …p.420). Enfim, o que abomina é a mudança pela mudança ou, o que volta ao mesmo, as “cosmogonias” das ideologias de todas as margens, que são às vezes inaplicáveis e catastróficas. Se ele defendeu os tratados de 1815, não é de forma alguma o que ele tinha ignorado das imperfeições e das hopócrisias; menos ainda porque ele considerava-os como” a última palavra do direito das pessoas”. Mas porque ele sabia que aquela explosão terrível e que aquelas negações da justiça resultariam da sua revisão.
Os tratados de 1815, mesmos resultados de uma série de ajustamentos sensatos em vias de estabelecer a paz na Europa, asseguram progressivamente um equílibrio entre poderes, desde que formularam as regras de uma garantia mútua deste equílibrio pelos Estados, que renunciaram assim toda pretenção hegemónica. Principios baseados sobre aqueles que Proudhon fundou todas as suas concepções em matérias filosófica, social e política: quando ele as vê realizadas, fê-las parcialmente, nos benificios europeus, ele só as pode aprovar. Mas ele quer completá-los por um terceiro príncipio que será o coroamento da instituição: o da autonomia. O que é bom, com efeito, nos benificios entre Estados, deve sê-lo também pela constituição interna destes Estados. Não é nesta condição que a justiça será respeitada a todos os nivéis da pirâmide humana, e tão somente na sua base nos benifícios entre individuos ou no seu extremo nos benifícios entre grandes poderes que se respeitam unicamente porque elas se respeitam.
“ Toda a aglomeração de homens, compreende num território claramente circunscrito, e podendo aí viver uma vida independente, é predestinado à autonomia” (Novas observações, p.211). Eis o axioma, homólogo daquele dos direitos do homem sobre o qual deve repousar o direito social. E, primeiro, na Europa, pátria do direito. Desde de logo que seria respeitada esta regra primordial, as questões de nacionalidades e de fronteiras, tão equívocas no regime actual dos estados, tomariam o seu sentido verdadeiro e tornariam solúveis. Proudhon, depois de ter batalhado tanto contra as reivindicações nacionais, encontra marcas paulinianas para os defender a sua volta: eles são pela independência, eu também… eles são pela Europa das pátrias, eu também! “À excepção de um, muitos outros falam sem os conhecer, eu inclino diante do príncipio da nacionalidade como diante daquele da família: é justamente por isso que eu protesto contra as grandes unidades políticas, que não me parecem ser outra coisa senão confiscações de nacionalidades” (Novas Observações…, p.219).
As nacionalidades assim reconhecidas e o falso príncipio da soberania dos grandes estados (impropriamente chamados nações) anulado pela redistribuição da soberania, a unidade poderá fazer-se, sem fusão nem hegemonia, pelo reconhecimento e garantia mútuas das autonomias. A primeira, e finalmente a única condição da federação europeia é assim que ela mesma seja composta de federações, desde as mais pequenas comunidades capazes de autonomia até ás maiores. Neste conflito igualitário, Proudhon não hesita, por outro lado, em reconhecer o Ocidente, uma preponderância, não de direito mas de impulsão, razão do seu longo passado civilizado. Ele não apanha mesmo o local que ele queria ver reservado à França, num texto que a sua actualidade nos autoriza a citar, primeiro que muitos outros conhecidos: “Ele está certo (…) que a Europa é uma federação de Estados que os seus interesses pareciam solidários, e que nesta federação, fatalmente ameaçada pelo desenvolvimento do comércio e da indústria, a prioridade de iniciativa e a preponderância surgem a Ocidente. Esta preponderância (…) o interesse da nossa conservação, bem mais que aquele da nossa glória, comanda-nos de a retomar. Quer-se, com este objectivo, proceder pela via das conquistas ou por aquela das influências? Quer--se que a chave do Estado francês seja o Presidente da República europeia ou, se se ama melhor, deixá-lo apanhar a oportunidade de tornar-se a monarquia, ao riso de uma terceira invasão e da dilaceração da pátria?” (Filosofia do Progresso, antes-proposto p.p.39-40).
Mesmo que ele tenha esta preponderância e esta escolha, nada seria mais contrário ao pensamento proudhoniano que a ideia de uma Europa limitada na extensão e, a razão mais forte, dominadora na sua inspiração. Todo o nacionalismo europeu é, por definição, estranho ao autor do Príncipio Federativo que foi o primeiro, e que é estacionário aquele da Justiça visto que, segundo ele, “O federalismo é a forma política da humanidade” (Justiça, II, p.288), suas conquistas pacíficas uma vez estabelecidas não poderão ouvir-se pouco a pouco, pela força de uma atracção invencível, até que a “hora tenha soado na federação universal, na qual toda a evolução histórica deve resolver-se” (Correspondência, XII, p.88).

Tuesday, April 17, 2007

Síntese Hegeliana e Equilíbrio Proudhoniano


Como Hegel, Proudhon pensa que existe no espírito como em todo o real um princípio dinâmico, uma espécie de alma motriz, graças a que tudo vive e tudo avança, tudo está em perpétua evolução:O verdadeiro em todas as coisas, o real, o positivo, o praticável, é o que muda, ou pelo menos o que é susceptível de progresso, conciliação, transformação, enquanto que o falso, o ficticio, o impossível, o abstracto, é tudo o que se apresenta como fixo, inteiro, completo, inalterável, infalível, não susceptível de modificação, conversão, aumento ou diminuição infractário, por conseguinte, toda uma combinação superior, toda uma síntese 1 .Mas lá cinge-se pouco a pouco a semelhança entre os nossos dois pensadores. A dialética na qual Proudhon procura dar conta deste movimento interno e reencontrar, a mimar por assim dizer o ritmo universal, não é nada a que Hegel descreveu e colocou na sua obra. A filosofia hegeliana é, saber-se, uma “vasta alquimia 2 ”, que se opera segundo um ritmo triadíco. O ser, que se procura, altera-se primeiramente no seu oposto (a tese opõe-se à sua própria anti-tese), para se reencontrar numa forma superior mais rica e mais concreta (Síntese), ela própria no princípio de um novo movimento análogo. Cada coisa à sua maneira encontra-se portanto uma vez completa, absorvida e ultrapassada, e sem deter o ser progressivo da espécie, até à síntese definitiva, que é realidade total e saber absoluto. É assim que Max tinha cumprido o seu mestre, no qual ele conservava a dialética repudiando toda a sua ontologia. Para ele também, “o que constitui o movimento dialético” é a luta de dois elementos contraditórios, até “à sua fusão numa categoria nova 3 ”.Ora, bastante deliberadamente, a dialética proudhoniana procede seguindo todas as outras vias. Ela separa-se eda dialética hegeliana em três pontos essenciais. Em primeiro lugar, enquanto que se produzem sucessivamente, só existem dois junto de Proudhon, mas em contra partida estes dois últimos termos mantém-se face a um do outro do princípio ao fim; ou seja, enquanto Hegel coloca a contradição para a “superar” em seguida, Proudhon constata a antinomia, e não pretende resolvê-la. Disso resulta, em segundo lugar, que junto de Hegel o ponto final do ritmo é a “Síntese”, enquanto que junto de Proudhon tudo se termina - tanto que se possa falar de um fim - pelo “equilibrio”. Enfim, observação capital, enquanto que junto de Hegel a Ideia está puramente imanente no processo dialético através do qual ela se procura e realiza-se, Proudhon, ele, admite um princípio de espécie transcendente, que escapa á dialética e domina todo o futuro, e que lhe é indespensável. Antinomia persistente, - transformando-se em equilibrio, - graças à acção de um princípio superior : tal são os três pontos que é preciso ver um pouco mais detalhado.Antinomia persistente: é a primeira grande aproximação que os marxistas hegelianos fiéis, fazem a Proudhon4. Tal, por exemplo, M. Cuvillier: “Proudhon renuncia resolver as contradicções. Ele não procura superá-las… Renunciando à síntese, (ele confessa) assim o seu poder em ultrapassar os antagonismos da sociedade actual 5 ”. M. Gurwitch, pelo contrário, aluga-lhe, mas a sua constatação é a mesma: “A dialéctica de Proudhon, escreve ele, é desde o início hóstil à dissolução das qualidades e à dialéctica emanista de Hegel 6”. Ele está certo que não é lá, da parte do nosso autor a cópia desajeitada do filósofo alemão que ele teria mal compreendido (nós tinhamos visto o que ele precisava pensar de uma tal explicação). Não é mais, como o acusa Marx, poder operar uma síntese que ele teria que ter procurado primeiro. É em plena consciência que ele forja, com algumas tentativas, o seu método, modelando a sua própria dialéctica sobre a realidade do ser e do pensamento tal como ele lhe surge. Acerca disto, ele não crê criticar Hegel de uma forma explícita. Ele escreve por exemplo, na Criação da Ordem, que “a natureza, quando se abraça o seu conjunto, empresta-se também a uma classificação quaternária e a uma classificação ternária”, e que ela “emprestaria provavelmente a muitos outros, se a nossa intuição era compreensiva”, uma espécie que “a criação evolutiva de Hegel se reduzia à descrição de um ponto de vista escolhido entre mil 7”. Mais tarde, a crítica precisa-se, ao mesmo tempo que se afirma a doutrina contrária, por exemplo, neste Programa de uma filosofia popular na qual Proudhon faz preceder a sua re-edição da Justiça.Os efeitos ternários, emprestados à natureza, são de puro empirismo… A fórmula hegeliana é uma tríade mas também o bom prazer ou erro do mestre, que conta três termos lá onde não existe verdadeiramente mais que dois, a que não viu a antinomia não se resolve mesmo, mas indica uma oscilação ou antagonismo susceptíveis somente de equilibrio. Neste ponto de vista, o sistema de Hegel inteiro seria refeito8.Eis o nítido. A fórmula decisiva foi encontrada. Ela era cara a Proudhon, pois ele retomara-a muitas vezes, na Teoria da Propriedade 9 e na Pornocracia. Ela vinha desde já no mesmo livro da Justiça, para motivar a mesma condenação de Hegel: “A antinomia não se resolve. Lá está o vício de toda a filosofia hegeliana. Os dois termos na qual ela se compõe, balançam-se, seja entre eles, seja com outras antinomias; o que conduz ao resultado procurado.” Estes “termos antinómicos”, ou categorias opostas, não são pois chamados a se fundirem; eles “não se reduzem só aos polos opostos que uma pilha eléctrica se destruíria10”. “Qualquer transformação que eles teriam que fazer”, eles formam tantos elementos que “subsistirão sempre, pelo menos na sua virtualidade, afim de imprimir sem parar o mundo, pela sua contradicção essencial, o movimento11”. Também eles não são primeiramente, produzidos uns com os outros. Pode-se compará-los a muitos corpos simples e irredutíveis: o metafísico encontra-se diante deles como o químico diante destes corpos, e se a lógica ensina a “reduzi-los”, ele não pode agitar-se aí, só “numa operação fantástica”. Os hegelianos, com a sua “exclusiva facilidade para criar laços de parentesco entre as coisas heterógenas”, são os “alquimistas” movidos por uma quimera, como os que inventaram a pedra filosofal12. Bom para um Pierre Leroux ou um Engantin segui-los. A sua dialéctica é uma caricatura da de Hegel, ela conserva os defeitos e aumenta o ridículo. Proudhon não gosta destas “inteligências zarolhas”, “fanáticas pela unidade13”. Ele mantém energeticamente até ao fim que “os termos opostos só fazem se balançar um ao outro, já que o equilíbrio não nasce entre eles, da invenção de um terceiro termo, mas da sua acção recíproca”; breve, uma vez mais, “que a antinomia não se resolve14”.É o mesmo que dizer que não existia só um movimento vão, um choque estéril, todo o desempenho do filósofo seria de registar? Absolutamente. O feito que a antinomia subsiste sempre não deve produzir nem cepticismo, nem desespero em todo o progresso. Com Proudhon, nós não temos o caso, como pretendia Fournière15, uma “dialéctica imobilista”, ou, como o dizia Saisset, uma “dialéctica negativa e estéril, que divide tudo por tudo, dissolve e nega por negar16”, não mais temos caso, assim como o pretendia Marx, uma espécie de hesitação ou de balanço perpétuo entre as duas teses. É interpretar o bem pelo falso, ou pelo menos o bem à superfície, antes de pensar que ele preconiza afinal de contas um ideal do justo meio “pequeno-burguês”. Na realidade, ele vê sobretudo duas espécies de movimentos se combinarem para assegurar o caminho do mundo ou do pensamento e dar-lhe o seu carácter progressivo: um produz-se no interior de cada antinomia, o outro resulta da ordenação das diversas antinomias em série contínua. “Tirai a antinomia, o progresso dos seres é inexplicável; pois onde está a força que produziria o progresso? Tirai a série, o mundo não é só uma mistura de oposições estéreis, uma ebulição universal, sem princípio e sem ideia 17.” Mas o espectáculo que oferece o universo a quem sabe investigar o enigma é justamente aquele de uma luta fecunda, é aquele de uma estimulação recíproca, de um montado em espiral. Por um fluxo e um re-fluxo incessantes, tudo avança, ou antes, tudo sobe. Nenhum valor se perde, nenhuma força é eliminada do combate; cada um demora por si e toma à sua maneira sobre a outra sua vingança; cada qual engana-se, transformando-se tudo, pela sua luta com a força contrária. Uma e outra, em vez de limpar-se ou dissolver-se, exaltam-se recíprocamente.Num só sentido portanto,”está tudo por recomeçar”.”O povo escreve Proudhon, queria acabá-lo; ora, eu repito-vos, não existe fim18.” Mas num outro sentido, existe progresso real. Ele teria podido dizer com Blake: “Sem contrários, não existe progresso; atracção e repulsão, razão e energia, amor e ódio, são igualmente necessários à existência humana19.” A guerra não é somente um facto social, exterior, que se observa sobre os campos de batalha ou também na “arena da indústria”; ela é um facto interior, que é necessário estudar “na consciência da humanidade20.” Se, como o facto exterior, ela deve ser suprimida, como o facto interior ela é “uma das principais categorias da nossa razão”, e da nossa razão especulativa assim como da nossa razão prática. Ela é uma categoria permanente. Não chegamos portanto de um estado absoluto de paz, que seria o fim do mundo e a morte do pensamento21. Mas se a guerra, neste sentido, não pode ser “abolida”, ela pode entretanto, e deve ser “transformada22”. Uma paz deve estabelecer-se na permanência do antagonismo. Este, que é preciso aceitar “como lei da humanidade e da natureza”, não é necessariamente destruição recíproca, mas “tem como objectivo a produção de uma ordem sempre superior, de um perfeccionismo sem fim23”. É preciso que ele se mude na “recíprocidade24”. Numa alma mestra de si mesma, numa sociedade bem ordenada, as forças não lutam só um momento para reconhecerem-se, controlarem-se, confirmarem-se e classificarem-se25, e “existe neste conflito de pensamentos humanos”, como naqueles elementos do mundo, “uma força organizadora26”.Tal deveria ser também a dialéctica social, se o homem usava razoavelmente a sua liberdade. Proudhon qualifica o seu método de “método de invenção revolucionária 27”. Segundo o que está para um e para outro dos dois momentos do seu ritmo, - destes dois momentos nos quais, diz ele, coloca-se “todo o verdadeiro pensamento 27”, - ele aparece destruidor, ou edificador; subversivo, ou conservador. Ele parecia contradizer-se constantemente. Na controversia que ele mantém com ele em 1849, Bastiat troçava. “Crê em mim, Senhor, responde-lhe ele, existe sempre pouca glória a adquirir, para um homem de inteligência, rir das coisas que ele não entende 28”. É bem verdade que os seus excessos de linguagem, num ou noutro sentido, dariam pretexto a este rir. Mas na realidade, todavia, ele é conciliador. “Toda a minha filosofia, diz ele não sem justiça, não é só uma perpétua reconciliação 29”. E diante do supremo tribunal de justiça, a 28 Março 1849, ele declara: “O socialismo é a doutrina da conciliação universal 30”. Junto dele, os termos antitéticos, empurrados um depois do outro como absolutos, são seguidamente re-integrados e reconhecidos igualmente necessários, provido para que eles se limitem e se corrijam. A sua oposição tornava-se mesmo a sua justificação. Para emprestar alguns exemplos ao mundo económico, o “monopólio” e a “concorrência”, o “trabalho” e o “consumo”, a “propriedade” e a “sociedade”. Tais “actividades individuais” e a “autoridade social”. “o que a concorrência está ocupada a fazer sem parar, o monopólio está ocupado a desfazê-lo sem parar; o que o trabalho produz, a consumação devora-o; o que a propriedade se atribui, a sociedade apara; e daí resulta o movimento contínuo, a vida infalível da humanidade”. “Não é um princípio, uma força na sociedade, que não produz mais miséria do que riqueza, se ela não é balançada por uma outra força do qual lado útil neutraliza o efeito destruidor da primeira 31”. Se uma das duas forças antagónicas está entravada, a actividade individual, por exemplo, socumbe sob a autoridade social, a organização degenera no comunismo e termina no nada. “Se, por outro lado, a iniciativa individual vem marcar o equilibrio, o organismo colectivo corrompe-se, e a civilização arrasta-se sob um regime de raça, de vício e de miséria 32”. Ordem e liberdade, socialismo e ciência económica, Estado e propriedade: outros exemplos destes pares dos quais Proudhon nos diz que “a acção recíproca” - e, acrescenta, “eu diria quase a ameaça mútua” - assegura o equilibrio vivo da sociedade 33. O Estado e a propriedade são alternadamente o objecto das sentenças de condenação mais radicais; mas eles tornam-se correlativos, então, não podem ser mais definidos pela “soma dos seus abusos 34”, mas sobretudo pelo desempenho moderador recíproco, e mesmo o que ele tem de abusivo neles pode tornar-se alguma espécie legítima se é necessário para este desempenho. A propriedade, nomeadamente, aparecia então no seu “destino altamente civilizador”; se o Estado é “o regulador da sociedade”, ela é a “grande mola”; penhora à sua origem, ela é um principio “vicioso e antisocial”, mas ela não pode tornar menos, com o concurso de outras instituições, “o eixo e a grande mola de todo o sistema social” e o “equilibrio” salutar que impede o Estado em tornar-se tirânico 35…Os significados que traduzem esta conciliação que é o verdadeiro ideal proudhoniano, segundo os pontos de vista diversos, são “justiça, igualdade, equação, equilibrio, acordo, harmonia 36”. Em cada um destes sinónimos “ encontram-se unidos a consciência e o entendimento, razão prática e razão especulativa, o real e o ideal, a lei do universo e a lei da humanidade 37”. Na Criação da Ordem, Proudhon, que já previa o seu método, dizia: “o balanço 38”, e retomará a expressão nas suas obras posteriores 39. É a Fourier que ele deve o significado de harmonia, a Fourier, ele diz, "artista, místico e profeta 40”. Ele próprio fala também da “melodia dos seres 41”. Mas o significado mais geral é o do equilibrio. Na Celebração do domingo, Proudhon evocava terminando “o equilibrio geral” que devia enfim, suceder “ao mais furioso antagonismo 42”. Mais tarde, ele escrevia que estas Contradicções económicas não são outra coisa que uma “operação de equilibrio 43”, e é ainda um “equilibrio geral dos Estados” que ele proposera como “sistema político da humanidade 44”. Somente, anotaremos bem, um tal equilibrio não é realizado uma vez por todas, não é uma “ordem” morta, esta ordem na qual “os nossos burgueses” são “amorosos até à raiva 45”. É um “equilibrio na diversidade 46”, e é um “equilibrio incessante 47”, isso, não tanto porque está sempre em vias de melhor se estabelecer. Verdadeiramente, sobretudo “equilibrio 48 ”, ou seja, equilibrio activo, dinâmico, onde a contradicção se torna em tensão. Como os nossos corpos materiais, o organismo espiritual e o organismo social têm necessidade de certos elementos que, em estado puro, seriam as poções, mas que, se corrigem e se unem um ao outro, conservando o movimento da vida 49 .Mesmo que ele se agite no mundo social, o nome por excelência do equilibrio assim realizado (ou sobretudo realizando-se) pela dialéctica será a justiça. Só nele, este significado introduz-nos numa esfera nova. Pois a justiça talvez considerada sob dois aspectos. Ela é o próprio benefício ao qual se deve chegar, e é neste sentido que ela é também, ou acima de tudo, ela é desde já, o principio que assegura a realização deste beneficio. Dizemos, servindo-nos de uma fórmula que não é a de Proudhon mas que se assemelha be traduzida, ao seu pensamento, que ele tem uma “justiça justificante” e uma “justiça justificada”, ou, para empregar um sentido diferente dos termos de M. Lalande, uma “justiça constituinte” e uma “ justiça constituída 50 ”. Ora a segunda só é possível pela intervenção da primeira. Além, ou debaixo das suas agitações antinómicas, existe a consciência, lugar destas agitações, que não pode melhor definir-se como uma exigência da justiça. No objecto, tudo é antinómico: também Proudhon pode declarar de boa fé que ele rejeita todo o absoluto, todo o elemento que seria então sério, não submisso à engrenagem dialéctica, toda a realidade transcendente. Não é menos verdade que a este complexo objecto e inquieto de contradicções é necessário, como para uma matéria, impõe-se uma forma, para tirar uma harmonia. Esta forma, é a justiça. Ora la não pode ser um simples resultado. A dialéctica é um processo que deve ser colocado na obra e orientado. Ele é-o porque nós o nomeamos a “justiça justificante”, e é assim que a justiça, antes de aparecer como o equilibrio obtido, revela-se como o mesmo principio deste equilibrio. Nas suas obras, Proudhon nunca expôs esta doutrina; só de uma forma confusa. Que tal seja bem entretanto a ideia que, mais ou menos obscoramente, o guia, não saberia duvidar apesar de ele reler o conjunto dos textos. É explicar, por outro lado, um dia, na carta ao seu amigo Langlois. Este tinha acreditado poder falar depois dele, ao longo de um artigo que o consagrara, de “antinomia da justiça”. Proudhon responde-lhe, a 30 de Dezembro de 1861, que ele encontra acerca deste ponto a sua redação , e talvez o seu pensamento incorrecto:Ele está bem seguro que a ciência do direito, como o da economia política, como a metafísica, etc., papel sobre as perpétuas antinomias; neste sentido, a vossa expressão justifica-se, e o vosso artigo faz muito bem compreender em que consiste, no direito da guerra e das gentes, a antinomia. Mais fundo, esta antinomia não vem da mesma justiça; a consciência não é a antinomia da sua natureza, como o entendimento. Não existirá nada de moral positiva se assim fôr, e nós deveríamos afastarmo-nos ou deixar fazer os Maltusianos. A Justiça, em si, é a balança das antinomias, isto é, a redução ao equilibrio das forças em luta, a equação, num só significado, das suas pretenções respectivas. É por isso que eu nada tomei como divisa da liberdade, que é uma força indefinida, absorvente, que se pode apagar mas não convencer; eu coloquei debaixo dela a Justiça, que julga, regula e distribui. A liberdade é a força da colectividade soberana; a Justiça é a sua lei 51.Neste reconhecimento de uma moral absoluta, de uma norma não dialéctica que se impõe à liberdade, nós temos o último tratado que diferencia radicalmente o método, e do mesmo lado, a doutrina proudhoniana, das de um Hegel ou de um Marx. Proudhon não pode admitir esta teoria hegeliana da guerra e do direito da força, que, diz ele, desonra a filosofia ao misturar o bem e o mal, o verdadeiro e o falso 52. Ele fala, também, de um certo “direito da força”, mas não é com o mesmo sentido. Ele aborda Hegel de não ter sabido dar “uma teoria forte e verdadeira da liberdade e da justiça, sem a qual existe vergonha e degradação para o homem 53“. Num progresso que não seria mais que um processo fatal e não “o efeito do nosso livre arbitrio”, ele recusa-se a ver um progresso real 54. A sua moral não quer ser nem relativista, nem oportunista. Permanece um sistema com termos do qual “a distinção do bem e do mal não tem nada de absoluto” e ele não deixa impôr reflexões sobre a evolução universal e sobre a história do mundo para abdicar da dignidade do homem individual. É ainda lá um aspecto desta personalidade, que aparece a Kierkgaard no Post-Scriptum 55.Uma segunda carta a Langlois faz-nos fazer um pouco mais. Respondendo a Proudhon, o seu amigo tinha afluído no seu sentido e desejado até a ir mais longe” que ele. Parecia-lhe, no fundo, dizia ele, “que o entendimento não é mais antinómico, no fundo, a consciência”. Está lá, diz Proudhon, o meu próprio pensamento: “o principio da Justiça, para a consciência, e o mesmo que o principio da igualdade ou da equação para o entendimento”, e é neste principio que se restabelecem todas as operações intelectuais. Assim a antinomia e a equação são bem duas formas do entendimento, mas a primeira tem por fim a segunda, e esta não tem portanto mais nada de antinómico; “aliás não existiria certeza, verdade, e o pensamento não seria mais que uma eterna balança”. É necessário pois admitir afinal de contas “que o entendimento, como a consciência, bem compreendida, abraça todas as antinomias, não pode nem deve ser dita antinómica 56”.Este esboço improvisado de uma teoria de inteligência não é de nenhuma clareza. Pelo menos, a intenção está nela manifestada. Depois da consciência moral, e pela mesma razão, é a própria inteligência que emerge da dialéctica. Estão do mesmo lado, todas as categorias essenciais, todas as grandes ideias, “forças puras, primeiras faculdades e criadoras”, que constituem por assim dizer, a base. “Elas estão, por natureza, sem sistema e fora de série 57.” Elas são o próprio espírito, na sua unidade.Proudhon tem visto portanto, que o Uno, princípio de toda a união como de todo o equilibrio, príncipio de harmonia universal, está fora do género. É necessariamente, dizia o ancião filósofo, “um transcendental”. Ele não saberia encontrar-se numa síntese, obter uma síntese. Ele não é o objecto nem o resultado: ele é o príncipio e a forma. “Nisso, conclui proudhon, consiste a pessoa humana 58”.Se ainda nós atirarmos um olhar ao conjunto sobre a dialéctica proudhoniana e à visão do mundo que ela supõe, nós seremos conduzidos antes em reconhecer que, tanto e mais que uma dialéctica, ela é uma fenomenologia. Para ela, efectivamente, as antinomias “são todas as contemporâneas, mesmo que elas se primem e se subalternem alternadamente 59”. Ela visa reduzir menos as oposições aparentes ou momentâneas, do que colocar em destaque tudo, transformando-as e organizando-as entre si, as originalidades irreductiveis e contrastantes. Pressente-se a ideia husserlina de uma série de valores heterógeneos, impossíveis de hierarquizar, na qual a coexistência é uma fonte de conflitos indefinidos. Mais, em todo o caso, naquele de um Hegel, esta filosofia é dramática. Sobretudo aquela de inúmeros hegelianos, junto dos quais as intuições do mestre tornam-se em fórmulas, e a sua dialéctica, um procedimento. Enquanto que estes “escamoteiam os conflitos ao ritmo ternário de uma valsa dialéctica 60 “. proudhon olha face a um undo que nenhuma operação de alguma espécie não pode reduzir a uma fórmula definitiva, e ele traduz a sua intuição pela palavra biblíca: “O Eterno é um guerreiro 61”. Contra todos os sistemas que mecanizam o progresso e negam a iniciativa humana no seio de um imenso desenvolvimento racional, ele conserva “o sentimento inextirpável da actualidade criadora 62”. Comparámo-la a Leibniz, cuja doutrina monádica despertava efectivamente as suas simpatias 63. Aproximou-se a sua dialéctica da de Fichte, concebendo um e a outro como uma “via ascendente contra a intuição de uma totalidade de elementos irreductíveis 64”. Sublinhou-se o paralelismo do seu papel com o de Kiekegaard perante Hegel e com o de Bakounine perante Marx 65. A seguir a Sainte-Beuve 66, chamou-se o seu parente de espírito com Pascal 67. Outras aproximações poderiam ser esboçadas. Todos têm a sua verdade. A todos eles, (eles) mostram que se teria injusta, sobre o mesmo plano da filosofia, de nigligenciar o pensamento de Proudhon.Não mais que toda uma outra, as obscuridades, as dificuldadesinternas não faltam a este pensamento. Pode-se pedir, por exemplo, em que consiste o benefício do “equilibrio” à “série" ou o da consciência às antinomias. Pode-se procurar como se juntam numa mesma explicação o ritmo necessário do universo físico ou do pensamento, e o ritmo do universo moral e social, onde a liberdade intervêm 68; como “o sistema das leis da Justiça é a mesma coisa que o sistema das leis do mundo 69”; de que “ponto de vista superior” “o homem e a natureza, o mundo da liberdade e o mundo da fatalidade”, “apesar de algumas dissonâncias, mais aparentes que reais”, “formam um todo harmónico 70”. Pode-se estimar também que Proudhon abusa do recurso à ideia dialéctica para permitir muitos exageros sucessivos e opostos 71; existe nas suas explicações um paradoxo verbal, como também existe no procedimento nos territórios hegelianos. É inegável, enfim, que este pensamento todo ele concreto, repugna habitualmente, no seu vigor, as análises pacientes e bem delimitadas, numa espécie em que a maior parte das noções que ela emprega, sobretudo a da justiça, cobrem um campo tão vasto e tão movimentado que é por vezes penoso reconhecer-se na confusão das suas significações analógicas. Se se quiser continuar a discussão até ao fim, talvez seria necessário examinar ainda se a ideia de “conciliação”, a que Proudhon expõe e coloca na obra, não contém qualquer equívoco, inclinando ora para a síntese e ora para o compromisso; examinar, por outros termos, se esta dialéctica triunfa plenamente em “resolver o conflito sem suprimir a tensão 72”; se esta filosofia que nós chamamos dramática triunfa ao escapar ao trágico puro 73 tanto que ela descança num optimismo a bom caminho e recusa igualmente considerar uma última solução onde a oposição superada; se ela não pretendia servir de justificação dialéctica a uma “revolução permanente” concedida como uma série sem fim destas “agitações” que Proudhon nunca tinha aprovado 74… sobretudo, como acordar a rejeição tantas vezes professada em toda a transcendência, ao inicio como o termo do movimento dialéctico, com a pretensão de impôr a este movimento uma norma e assinalar-lhe um fim?Mas estas dificuldades e, se se desejar, estas contradicções não devem, entretanto, fazer-nos concluir o “completo insucesso” nem, na mais forte razão, o “nada completo” do método proudhoniano, como o fez F. Pillon com muita injustiça 75. Elas não autorizam a confundir a sua dialéctica com os “procedimentos de sofista 76” ou a tratá-la de “mistificação 77”. Elas constituem sobre tudo, diremos, resgate de um pensamento que não se resigna em encerrar, apesar das suas ilusões, no futuro e na imanência. Marx pode bem ridicularizar Proudhon de ter feito das categorias económicas, essencialmente transitórias, “expressões teóricas das condições de produção material de uma certa época”, as “ideias que teriam pré-existido em toda a eternidade”; ele pode bem, alargando a sua crítica, ver no seu adversário uma “vítima da ilusão especulativa”, incapaz de compreender “o movimento histórico que pertuba o mundo actual”, e o lamenta de ter penetrado pouco “no mistério da dialéctica 78”. Por mais desprezador que ele se revele, este julgamento é-nos precioso. Constatando os mesmos factos, nós podemos pelo contrário estimar que Proudhon, se ele não tem grave poder de Marx, não foi no mínimo como ele, victima de ilusão dialéctica, que ele soube reconhecer a espécie da eternidade de todo o que este homem tem de essencial no seu entendimento e na sua consciência, e que assim, sem penetrá-lo, ele pressentiu mesmo o mistério ontológico. As suas soluções, na medida onde elas existem, não nos satisfazem nada, mas pelo menos com ele, como nós veremos mais detalhadamente no último capítulo, os problemas essenciais são e permanecem colocados. As suas negações nunca são definitivas. Os seus julgamentos mais peremptórios não acarretam toda a retomada. No momento que nos vem chocar, a sua dialéctica faz de si o nosso aliado contra si mesmo, não talvez a mais verdadeira. Sempre, consigo, a discussão permanece aberta.
NOTAS
1 Filosofia do progresso, p.21.2 Émile Bréhier, História da filosofia, t.2, p.746.3 Miséria da filosofia, tr. fr.(1896),p.155.4 Cf. Marx, loc.cit.: “Proudhon está atónito de esterilidade quando ele se agita em produzir o trabalho de produção dialéctica na categoria nova”. E p. 150: “M. Proudhon, apesar da grande pena que ele tomou em escalar a altura do sistema das contradicções, nunca pode elevar-se debaixo dos dos primeiros escalões da tese e da antitese siples, e ainda os transpôs duas vezes, e, estas duas vezes, ele caiu uma vez para trás…”5 À luz do marxismo, t. 1, p. 181 e 182.6 A ideia do direito social, p. 333.7 Criação da ordem, p. 162.8 Justiça, t. 1, p. 211. Comparar a sátira de Renouvier sobre “este método desastroso dos agrupamentos, das aproximações e dos encadeamentos de termos ternários, por meio daquela, substitui-se tudo o que o vulgar apela definição e prova, uma combinação artificial e sempre artificial de vocábulos, determinados em aparência uns pelos outros, e portanto bastante vagas para se sujeitar a todas as necessidades. Quantos investigadores improvisados do verdadeiro dogma são imperfeitos os Orfeus da religião e da filosofia do futuro, porque eles sabiam jogar, sem nunca ter aprendido este instrumento fácil e agradável, e eles não se metiam em pena de sons todos diferentes como eles os entendiam dar entre as mãos dos seus rivais! O inventor Hegel havia tirado as melodias mais sábias, etc.” Introdução à filosofia analítica da história (1864), p. 154-155. 9 Teoria da propriedade (1866), p. 206.10 Teoria da propriedade, p. 52.11 Confissões, p. 316. Capacidade política, p. 200. Cf. R.Aron e A.Dandieu, A revolução necessária (1933), p. 163: “A síntese, é o fim do movimento, é, pensá-lo bem, a forma social da morte.”12 A Monard, 31 Dezembro 63 (t. 13, p. 213-214).13 Teoria da propriedade, p. 212.14 Pornocracia, p. 122-123.15 As teorias em França no séc. XIX, p. 375.16 As escolas filosóficas em França. Revista dos Dois Mundos, Agosto 1850, p. 675.17 Miséria, t. 2, p. 396.18 A Langlois, Dezembro 51 (t. 4, p. 157).19 Blake, Casamento do Céu e Inferno, debate.20 A. M. X., 5 Junho 61 (t. 11, p. 112).21 Guerra e Paz, p. 33, 341 e 486.22 Op. cit., p. 49 e 56.23 Op. cit., p. 482-483.24 Cf. solução do problema social, Programa, 31 Março 1848: “Mesmo que a vida suponha a contradicção, a contradicção por seu lado, apela à justiça: daí a segunda lei da criação e da humanidade, a penetração mútua dos elementos antagonistas, a Reciprocidade.” (p. 92).25 Guerra e Paz, p. 134.26 Justiça, t. 3, p. 256.27 Confissões, p. 177.27 Miséria, t. 2, p. 396.28 Carta a M. Bastiat, 3 Dezembro 49 (na Bastiat, Obras, t. 5, p. 147).29 Miséria, t. 1, p. 368. Cf. p. 72: “A verdade encontra-se, não na exclusão de um dos contrários, mas na conciliação dos dois”. Proudhon acrescenta, em linguagem hegeliana, que eles deviam ser “absorvidos” um e outro “numa fórmula mais complexa”. É o caso de nos lembrar da nota de M. Gurwitch, A ideia do direito social, p. 331: “Quanto ao fundo do seu pensamento, aqui como algures, ele serve exclusivamente o seu próprio caminho e considera as antinomias como irredutiveis.”30 Cf. Berthod, na Ideia da Revolução, p. 29. No primeiro capítulo da Miséria, a propósito da oposição da economia política e do socialismo, a ideia e o significado de conciliação surgem muitas vezes. Mas o que “ele se agita para descobrir”, é “uma lei superior”, é “uma fórmula de conciliação superior às utopias socialistas e às teorias mutiladas da economia política”, não existe portanto “o parar num meio arbitrário justo, insassiável, impossível”. (t. 1, p. 78, 79, 81).31 Justiça, t. 2, p. 131.32 Miséria, t. 2, p. 396.33 Guerra e Paz, p. 498. Cf. Miséria, t. 2, p. 391: “O socialismo tem razão em protestar contra a economia política e dizer-lhe mesmo: Vós não sois mais que uma rotina que vós mesmos não entendeis. E a economia política tem razão em dizer ao socialismo: Vós não sois mais que uma utopia sem realidade nem aplicação possível. Mas um e outro negam sucessivamente, o socialismo, a experiência da humanidade, a economia política, a razão da humanidade, todos os dois faltam às condições essenciais da verdade humana.”34 Cf. O que é a propriedade? p. 128: “M. Blanqui reconhecia que existe na propriedade uma loucura de abusos, e de odiosos abusos; do meu lado, eu chamo exclusivamente propriedade à soma destes abusos.” (Prefácio à 2ª Edição, 1841). Sabia-se, da propriedade assim entendida, Proudhon distingue expressamente a possessão.35 Teoria da propriedade, p. 173 e 208. “Se se estuda nas suas consequências politicas, económicas e morais o poder essencialmente abusador da propriedade, desfaz-se nesta união de abuso uma funcionalidade energética, que acorda imediatamente no espírito da ideia de um destino altamente civilizador, também favorável, mais ao direito do que à liberdade.” Cf. Justiça, t. 3, p. 264: “Eu entendo não suprimir nada do que eu tinha feito decididamente a crítica”, (mas eu desejo) “colocar cada coisa no seu lugar, após ter censurado o absoluto e balançado com as outras coisas”. E Capacidade política, p. 200, a propósito da liberdade e da unidade ou ordem, etc.: “Não se pode nem separá-los, nem absorvê-los um ao outro; é preciso resignar-se para viver com os dois, equilibrando-os”. 36 A Bergmann, 15 Novembro 61 (t. 11, p. 286). Teoria da propriedade, p. 217. 37 A Bergmann, 15 de Novembro de 61 (ibid.)38 Criação da Ordem, p. 213.39 Justiça, t. 2, p. 60, 95, 131, t.4, p. 432. Teoria da propriedade, p. 206. Pornocracia, p. 232, etc.40 Capacidade política, p. 193. Cf. Guerra e Paz, p. 134: “A oposição das forças tem pois como fim a sua harmonia.”41 Miséria, t. 2, p. 396.42 Domingo, p. 96. Nesta página, Proudhon sonha ainda um dia onde “o problema social será absoluto”, onde “da mistura de todas as doutrinas nascerá a ciência una e indivisível”, onde o homem poderá exclamar: “os tempos de prova são finitos, a idade de ouro está diante de nós”. Mas talvez não é necessário ver que um pedaço de bravura, mais ou menos imposto pela lei do género. Nesta dissertação apesar de académica, ela é uma espécie de analogia da “vida eterna” dos predicados.43 Teoria da propriedade, p. 217.44 Guerra e Paz, p. 497-498.45 Justiça, t. 3, p. 256.46 Domingo, A Criação da Ordem falará igualmente da “intuição sintéctica na diversidade”, da “totalização na divisão” (ed. Lacroix, p. 210-15).47 Teoria da propriedade, p. 52.48 Op. cit., p. 206.49 É o que Proudhon explica ao cardial Mathieu, Jutiça, t. 2, p. 94-95: “Dizei-me, Meu Senhor, o que vós fuméis ou respiréis no tabaco, que cós prováis no Kirsch, que vós coméis no vinagre, não são os peixes, e os mais violentos de todos os peixes? Bem, ele é assim em alguns principios que a natureza tem misturado em nossas almas, e que são essenciais á constituição da sociedade: nós não poderíamos existir sem les; mas por pouco nós entendemos ou concentramos a dose, alterámos a economia, nós morremos infalivelmente por eles. De outro modo, no regime de balança e de falsos pesos onde nós vivemos, a divisão do trabalho é funesta ao operário, a concorrência desastrosa, a especulação vergonhosa, a centralização humilhante, eu acrescento que a propriedade é imoral e funesta. Como a amêndoa amarga, reduzida pela análise química à pureza do seu elemento, tornando-se ácido prússico, assim a propriedade, reduzida à pureza da sua noção, é a mesma coisa que o roubo. Toda a questão, para o emprego deste elemento temível, é, repito-o, encontrar a fórmula, num estilo economista, a balança…”.50 Comparar com a doutrina platónica da alma como “harmonizante” ou como “harmonizante” ou como “harmonia aplicada”: Cf. P. Lachière-Rey; As ideias morais, sociais e políticas de Platão, p. 62.51 T. 11, P. 308.52 Guerra e Paz, p. 107.53 Justiça, t. 3, p. 504.54 Ibid. “Diz-me enfim… que ideia eu posso ter do progresso, quando de todas as vossas palavras resulta que eu não sou mais que uma marioneta?” (P. 502). Sem dúvida Hegel pretende que a história da liberdade; mas a sua liberdade não difere no fundo da necessidade; ela é a força obstinada que possui o organismo intelectual, ela é o movimento orgânico do espírito. Hegel não admite mais a liberdade do que Spinoza. (P. 499-501).55 Cf. Kierkgaard, Post-Scriptum (trad. Paul Petit).56 17 Janeiro 62 (t. 11, p. 349-350). E já lá, diz ele, o “pensamento fundamental” do novo prefácio que ele vem colocar na Justiça (re-edição de Bruxelas).57 Revolução social, p. 55. Desde já, na conclusão da Miséria, t. 2, p. 388, Proudhon escrevia: “A profundeza dos céus não iguala a profundeza da nossa inteligência, no seio da qual se movem maravilhosos sistemas… Lá pressente-se, chocam-se, balançam-se forças eternas…”: e p. 395: “ As ideias, iguais entre si, contemporâneas e coordenadas no espírito, parecem atiradas para a confusão, dispersas, localizadas, subordinadas e consecutivas na humanidade e na natureza, formando quadros e histórias sem igual com este desenho primitivo; e toda a ciência humana consiste em reconhecer nesta concepção o sistema abstracto do pensamento eterno: “Assim, escrevia ele a Paul Armenkov a 28 Dezembro de 1848, a força da subtilidade, o rapaz adere a descobrir o pensamento de Deus…”58 Loc. cit.59 A M. Clerc, 4 Novembro 63 (t. 13, p. 343).60 Aron e Dandieu, A revolução necessária, p. 160.61 Exôdo, 15, 3. Colocado no exergo na Guerra e Paz.62 Aron e Dandieu, op. cit., p. 161.63 G. Gurwitch, A ideia do direito social, p. 334.64 Gurwitch, op. cit., p. 333. Sobre a forma na qual Proudhon teria podido subir a influência de Fichte por intermédio de Krause e d’Ahrens: ibid., p. 336-337.65 Aron e Dandieu, op. cit., p. 155-156 e p. 161. Cf.Torsten Bohlin, Kiekegaard: “Kiekegaard acentua muito e sem deixar o carácter combativo da vida da personalidade. A tese de Herades sobre a discórdia produzindo todas as coisas passa na concepção kiekegardiana da transformação e das condições vitais da personalidade.” (P: 87).66 P.-J. Proudhon, p. 223.67 Roger Picard, na Miséria, t. 1, p. 28-29. Jean Lacroix, Itenerário espiritual, p. 81. Miguel de Unamuno, A agonia do cristianismo, tr. fr., p. 117.68 Cf. Justiça, t. 4, p. 431-432: “Então, a ideia de uma harmonia universal entra na minha alma; eu digo a mim mesmo que entre o mundo da natureza e o da Justiça, lei, força, substância, tudo é idêntico; que assim, como a ordem é perfeita entre as esferas que percorrem o espaço; a proporção imutável entre os elementos nos quais se compõem toda a criação, ele deve estar mesmo entre os homens. E o facto vem em seguida confirmar a hipótese. A economia, a política, a organização do atelier, a Razão pública, resolvem-se num sistema de ponderações ou de balanços; nesta analogia de legislação entre o Cosmos e o Anthrôpos aparece a identidade de espírito que os anima, latente no primeiro, livre no segundo.”69 Ibid., p. 433: “O universo está estabelecido sobre as leis da Justiça; a Justiça é organizada após as leis do universo, etc.” A Chaudey, 15 Janeiro59: “Lei do homem e da natureza” (t. 8, p. 350): Justiça, Notas e esclarecimentos: “A Justiça é a lei fundamental do univeso”. (t. 2, p. 298).70 Justiça, t. 2, p. 389.71 A sua dialéctica surgia aqui como a transpiração abstracta do seu temperamento. É o caso de nos lembrar o que ele escrevia um dia, a 15 de Abril 61, a Rolland: “Comigo, é sempre necessário corrigir, interpretar uma excentricidade por uma outra, se quiser ter o verdadeiro pensamento e o verdadeiro carácter do homem.”72 A expressão é de M. Jean Lacroix, Pessoa e Amor, p. 44.73 Sobre a noção do trágico: Georges Didier, Valores trágicos e valores cristãos, na Cidade Nova, 10 Outubro 1942.74 Que o espírito proudhoniano seja elogiado de todo o “trotskismo”, é também o que resulta do desprezo que sufoca Trotsky no seu percurso. (Cf. Trotsky, Defesa do Território, tr. fr., p. 53-54.75 A Crítica filosófica, t. 2 (1872-73), p. 379. A propósito da “grande síntese” revista e anunciada por proudhon, o autor fala ainda de uma “nuance do ridiculo” e de uma “nuance de charlatanismo”, no que não devem dissimular-nos o sério esforço proudhoniano.76 Renouvier, Filosofia do século XIX, no Ano Filosófico, 1867, p. 74.77 Edmond Scherer, cruzamento da crítica religiosa, p. 510. Talvez se aproximasse a Proudhon com mais justiça em não ser sempre fiel a si mesmo, a alma do seu método. Porquê, por exemplo, metia-se ele no reboque de Machiavel e de Rousseau, como nós o tinhamos visto no capítulo precedente, para impelir da distinção evangélica do temporal e do espiritual na sociedade? Como é que ele não viu que existe, “nesta mesma tensão” entre os dois poderes, ”uma salvaguarda preciosa da pessoa humana e dos seus interesses superiores”, bem mais ainda na tensão que ele destinava a este mesmo fim entre governo e propriedade? O problema não deve ser em procurar qual poder asseguraria o outro ou o absorverá para lhe acrescentar as prerrogativas aos seus próprios, mas como a “guerra” entre eles poderá transformar-se em “harmonia” para uma colaboração fecunda. Cf. Joseph Lecler, A Igreja e a soberania do Estado, na Construcção, 1942.78 Marx, comentando a sua própria obra contra Proudhon (citado por Otto Ruhle, Karl Marx, p. 117-118). Cf. a carta desde já citada a Paul Armenkov: “As categorias económicas… são para M. Proudhon as fórmulas eternas que não têm nem origem nem progresso, etc.”; o antagonismo que ele crê descobrir não é só mais que a sua própria “incapacidade em compreender a origem e a história profana das categorias que ele diviniza”. Reconhcer-se-ia de outro modo facilmente o método marxista, com todos os seus partidos tomados, permanece um instrumento mais eficaz que o método proudhoniano para a análise de evolução social. Mas esta análise não é tudo.

Monday, April 16, 2007

TEOLOGIA PROUDHONIANA


“A sociedade francesa não tem nem princípios nem crenças… O edifício inteiro do espírito humano, da consciência humana é reconstruir: A quem enviar esta reedificação? Duas autoridades apresentam-se: a Revolução e a Igreja. Qual delas seguir? Será possível uma conciliação?
É esta questão, que é aquela de uma vida, que pretende responder a obra de 1858, como o seu mesmo título o deixa prever: Da Justiça na Revolução e na Igreja. Ela está decidida no cardial arcebispo de Besançon, Mgr Mathieu, “meu” bispo, precisa Proudhon (1). Concorda-se a lá ver a sua obra “principal”; ele é quem em todo o caso quer compreender a sua singular “teologia”. Ele foi no século XIX o breviário do anti-clericalismo o mais decidido e o mais inteligente.
A entrada em jogo, Proudhon encara o feito religioso ao nível da sua eficácia social e procura acima de tudo na religião, como os seus mestres no catolicismo, um princípio de ordem social: é preciso que os povos “acreditem em algo” e sejam animados por uma “força de justiça”, se se quiser evitar a decadência (2). É o primeiro postulado deste partidário do não-governo, deste an-anarquista, moralista, socialista e “feitor da ordem” (assim se qualifica ele).
Mas existem duas maneiras, segundo ele, de conceber esta indispensável “força de justiça”: ou bem representa “como uma pressão do redor exercida sobre mim” e modelando o homem do exterior; ou bem faz-se surgir “de uma faculdade minha que, sem sair do seu foro íntimo, sentiria a sua dignidade na pessoa, e encontraria assim, conservando toda a sua individualidade, idêntica e adquada a ser mesmo colectiva (3)”. O primeiro sistema, o mais antigo, é o da Transcendência: é aquele de todos os que “ficam fiéis ao princípio da subordinação externa”, que este princípio seja Deus, a Sociedade, o Grande-Ser, ou “toda a outra Soberania, mais ou menos visível ou respeitável (4)”.
Mas a Transcendência encontrou a sua expressão mais elaborada e mais perfeita no catolicismo, numa espécie de sorte que este está convencido de errar, tudo se aniquila. Quanto ao outro sistema, “radicalmente oposto ao primeiro”, é o da Imanência, ou seja, inacto da justiça no homem e na sociedade; ele tem ainda todo o apreço do fruto verde, e o seu porta-voz chama-se a Revolução (5).
Na “hipótese católica”, a justiça é “comunicada” noa altos (sacramentos), “intimidada” do exterior ao sujeito (Revelação, Tradição, magistério), a tal ponto que o individuo não pode encontrar a sua saudação renunciando a todo o próprio julgamento, a toda a autonomia. Desligado por si próprio de toda a moralidade e de todo o “proncípio de justiça”, ele é normal, como o afirma a Escola católica (Maistre, Bonald, La Mennais, Donoso-Cortès), que ele seja “sem direitos”; ele só tem “deveres”, ou acima de tudo um único dever: o de obter no seu deus e aos seus representantes sob a terra (Rei, clero, nobreza). Por via de consequência, a ordem segundo o direito divino será necessariamente uma ordem autoritária, hierárquica e imutável (6), uma ordem “desumana”, que não atende nada ao homem, sacrifica toda a interioridade às exigências da sociedade (Bonald) e ignora o progresso. Nesta perspectiva, o valor moral do acto depende essencialmente da sua conformidade ou da sua não-conformidade a um direito puramente exterior; quanto às disposições do “assunto”, sabe preocupar-se pouco (ele reenvia aqui à prática religiosa ”forçada” pelos colégios da Restauração).
Tudo se reduz a uma questão de “disciplina”. Assim se explica, prossegue Proudhon, a aliança da monarquia do direito divino e da Igreja, do absolutismo e do catolicismo, do poder e do hissope: “Será ele bom? Pergunta o general a propósito de um militar acusado de violação. –Sim. –Sejam indulgentes”. “É o significado da Igreja: Ele vai À missa? –Sim. –Sejam indulgentes (7)”.
De onde a sua conclusão: este género de moralidade é o cúmulo da imoralidade; é um insulto permanente à dignidade humana.
Na segunda hipótese, ele vai pelo contrário. Dotado de um “sentido moral”, de uma “faculdade de justiça”, o homem encontra em si mesmo o seu principio de justificação, mesmo se este não possa desenvolver-se e expandir-se em toda a vida social. A sua composição, isso seria mais desonrá-lo do que fazer depender a sua moralidade de uma Soberania estranha. Toda a sua justiça descança sob “uma espécie de ordem secreta de si próprio para si próprio”; uma espécie que ele não a considerará como “boa” o que é confessado pela sua consciência, e como o “mal” que lhe é apresentado como tal pela sua consciência (8). Por via da consequência, a ordem segundo o direito humano será uma ordem fundada sob a dignidade inabalável da pessoa, e soberania respeitadora das suas exigências fundamentais. Por outro lado, como a personalidade é essencialmente a mesma junto de todos, isso será uma ordem de tendências igualitária e libertária (purificando o significado de toda a nuance perjurativa ou anti-moral), que procurará em todas as ocasiões a adesão intíma, reflectora, cordial do cidadão, e que fará sem dúvida apelo à sua participação e à sua responsabilidade.
Com efeito, a “faculdade justiceira” na qual o homem está prevenido para isso de particular para ela ultrapassa todo o individualismo: ela entra em jogo antes do ser humano, qualquer que ele seja; uma espécie de homem, à diferença do animal, prova À VEZ “a obrigação de respeitar-se em toda a circunstância, e de respeitar o próximo, como [ele] queria ser respeitado [ele mesmo], se ele estivesse no seu lugar (9)”. Noutros termos, “o que faz com que eu respeite o próximo […] é a sua qualidade do homem (10)”: e, “o que é mais extraordinário, eu ofendo-me a mim mesmo ofendendo-o (11)”. Brevemente, pela sua consciência, o homem “tem a faculdade de sentir a sua dignidade na pessoa da sua semelhança como na sua própria pessoa, de afirmar-se à vez como o indivíduo e espécie (12)”.
A “lei suprema” de toda a justiça é portanto a lei de reciprocidade: “Faz aos outros o que tu queres que te façam a ti. Não faças aos outros o que tu não queres que te façam (13)”.
Desenvolvendo esta norma graças à qual “a distinção do bem e do bem é feita, consequentemente a lei editada por todos os degraus de civilização e todos os casos possíveis (14)”, obtêm-se esta amplificação majestosa: “A justiça é o respeito, espontaneamente aprovada e reciprocamente garantida, da dignidade humana, em alguma pessoa e em alguma circunstância que ela se compromete, e a qualquer risco que nos expõe a sua defesa (15)”.
Tais são, segundo ele, as duas formas antinómicas de representar-se a Justiça e portanto a ordem na sociedade. A escolha é clara: ou a Transcendência, o catolicismo, o direito divino – ou a Imanência, o direito humano, a ideologia dos direitos do homem e a Revolução. “Lá existe a nossa vida moral, a nossa saúde eterna, como diz a Igreja, e nem a questão mais alta o fazia subelevar-se entre os homens (16)”. Noutras palavras, “a questão está entre a Revolução e a Igraja (17)”.
Nós conhecêmo-lo bastante para saber qual é a resposta… É um jogo para ele de “provar” de seguida a sua tese à ocasião de todos os grandes problemas que assustam a humanidade: desprezo sistemático da pessoa no “sistema católico” fundado sobre o pecado original e a perda de todo “sentido moral” junto do homem perdido; “insulto hierárquico”; educação visando a formar de “bons sujeitos”, tal que lhe falta para o poder absoluto; “penitenciária aflitiva e infamante” (ele nomeia Saint-Acheul); pobre de instrução das massas (Maistre, Bonald, Donoso-Cortès); disciplina rigorosa das ideias, Santo-Oficio, Santa-Inquisição; “dogma” da desigualdade providencial e dos estados de vida; oposição a tudo o que desenvolve o sentido crítico, como a ciência, a indústria mecânica, hostilidade do príncipio às “luzes da razão”; etc. “Aqueles de 89”, pelo contrário, e mais geralmente aqueles que acreditam na Imanência, pregam “o respeito igual e recíproco”, não somente pelo Céu, mas desde neste mundo, e entre todos os homens, quaisquer que sejam a sua origem social, a sua situação, ou a côr da sua pele. Por isso, eles não procuram fazer da criança “uma cerca aroeira”, eles querem “colar_____ nas veias; ao “sujeito dócil”, eles preferem “o homem digno ao cidadão confiar os seus direitos e seus deveres; eles não reduzem a “ventilação das ideias”, eles organizam-na; eles não governam pelo atractivo das recompensas ou pela pena do castigo (céu, inferno), mas eles acreditam que existe uma justiça imanente e que a sanção nasce no acto como a flor do caule: “Tudo se deleita no homem, na sociedade, na natureza, quando a Justiça é observada; tudo sofre e morre, quando se é violada (18)”. Enfim, as verdadeiras “justiças” não enganam o povo pregando-lhe uma igualdade “celestial”, eles querem que, desde esta terra, para todos os homens, a reciprocidade do respeito, proclamada entre as pessoas, conduz à reciprocidade dos Serviços e à equivalência das condições: é todo o socialismo pelo menos ao que ele atende (19).
Tais são algumas das “certezas” que ele diz ter ____” ao mais profundo da [sua]consciência”… depois do que nós tinhamos dito sobre a sua infância, sua adolescência, suas humilhações, suas leituras será preciso insistir mais? A oposição da Transcendência e da Iminência, é o “duelo fantástico” da “muito católica restauração”, o antagonismo dos ultra e dos liberais, o afrontamento das suas ideologias “absolutista” e “progressista” (20), onde nunca se reclamava os direitos de Deus e na outra os direitos do homem. A sua “teologia” não é mais que a sistematização, por vezes genial, mas sempre abusiva, dos feitos e das cenas da sua juventude, que ele explica a si mesmo, interpreta, aumenta, deforma e retorna à luz dos seus “autores”.
Ele escreve, é verdade, em 1855-1858, muito tempo depois da idade da ordem da "aliança do trono e do altar”; mas por uma parte as suas “autoridades” (Bergier, Maistre, Bonald e seus discípulos) permanecem as teologias indiscutidas da corrente católica maioritária; por outro lado, depois do
Teu Deus que acompanhou a proclamação do Império, depois da inflexibilidade do Piedoso IX, o “cliché afectivo” da Restauração joga de novo (21), e a sua sensibilidade exacerbada reduz mais ainda uma “Segunda Restauração”. Assim também, para justificar o seu anti-catolicismo sistemático, não é somente ao tempo da sua juventude que ele nos reenvia, mas a numerosos feitos actuais. Lê-se por exemplo na Justiça continuada:
“A Igreja está encarregada de pregar as missas, para os seus 40.000 tribunas, os grandes princípios da autoridade, da hierarquia, do poder absoluto, da nobreza hereditária, da desigualdade providencial, da servidão e da razão, e outros, que a reacção do 2 Dezembro misturou na ordem do dia, e contra os quais protesta com energia a consciência pública. A Igreja é a única moral que domina a nação, e a nação não quer mais (22)”.

De onde a necessidade de uma “nova espiritualidade”, de uma “nova moral”, “que deixará longe a última moral e espiritualidade cristãs (23)”: aquelas do direito humano, por oposição ao direito divino (24). Ele é verdadeiramente, neste sentido, um dos pais da “moral laica (25)”.
Todavia, a “questão social”, a miséria das classes operárias, a atitude da Igreja face ao proletariado nascente, tudo isso pesa também com um grande peso sobre o seu comportamento anti-religioso. Ele não esquece os seus companheiros de infortunio, nem o “sermão (26)” que ele tinha feito em 1838 de “melhorar a condição física, moral e intelectual da classe mais numerosa e mais pobre (27)”. Mas como imaginar uma real promoção das massas populares no “sistema da desigualdade natural e providencial”, que não para de pregar a Igreja em toda a ocasião?



NOTAS:


1 Proudhon escreve ora Matthieu, ora Mathieu. A boa grafia é Mathieu. Nascido em Paris a 17 Janeiro de 1796 (seu pai, depois de ter sido sedoso em Lion, estabeleceu-se na capital onde ele tinha um escritório de negócios). Césaire Mathieu acaba os estudos de direito e torna-se advogado em 1815. Ele entra pouco depois para Saint-Sulpice e é ordenado padre na capela de Carmes em 1823 aos 27 anos. Em 1829, ele é vigário geral de Paris, abade de Madeleine em 1831, bispo de Langres em 1832, aos 36 anos. Ele é transferido para a sé de Besançon a 11 Junho de 1834, onde morreria quarenta e um anos depois, em 1875. Cf.Besançon, Vida da sua Iminência Mgr o cardeal Mathieu, arcebispo de Besançon, 2 vol., Bray e Retaux, 1882. Escreve no estilo de então, este estudo, pouco científico, dá lugar a uma missa no ponto polémico de J.-F.Bergier, Suplemento à vida do Cardial Mathieu, no seu viver, arcebispo de Besançon, Besançon, Bonvalot, 1883. Sob a Monarquia de Julho, Mgr Mathieu foi uma forte influência sobre as nominações episcopais, devido aos seus laços muito estreitos com Mgr Garibaldi, internúncio. Cf.Paul Poupard, correspondência inédita entre Mgr Antonio Garibaldi, internúncio em Paris e Mgr Césaire Mathieu, arcebispo de Besançon, Boccard, Paris, 1961.
2 Justiça, t.I, p.251 a 254, 284, 324.
3 Justiça, t.I, p.316.
4 Ibid.
5 Justiça, t.I, p.316 e 317.
6 Estas são as três notas as quais Bergson, nas Duas Fontes…, utilizará para caracterizar o ideal de uma sociedade não democrática.
7 Justiça, t.II, p.228; ver também t.I, p.319 à 321; t.II, p.473; t.III, p.334, 651. Justiça continuada, p.223,273,275, etc.
8 Justiça; t.I, p.326. Adiante, p.25.
9 Justiça, t.III, p.360.
10 Justiça, t.I, p.426.
11 Justiça, t.I, p.418,419.
12 Ibid., t.I, p.423.
13 1ª Memória, p.143, 144. Justiça, t.I, III, p.355. Esta “lei” reencontra-se em todos os seus escritos, sem nenhuma excepção. Ele observa que é a lei do Evangelho, mas que ela é-lhe muito anterior. É portanto a lei “natural”, “absoluta”, “suprema”. Cf.Introdução, p.13. A sua formulação da lei moral faz pensar em Kant na qual ele tinha lido e anotado as obras, traduzidas pelo seu amigo Tissot, professor em Dijon.
14 Justiça, t.III, p.355.
15 Ibid., t.I, p.423.
16 ibid., t.I, p.292.
17 Ibid., t.I, p.271; é o título de um desenvolvimento.
18 Justiça, t.IV, p.352. Em letras maíusculas no texto.
19 Desenvolverei os aspectos positivos do seu pensamento numa outra obra.
20 O termo é corrente do século XIX e designa todo o partidário do progresso.
21 Adiante, p.116.
22 Justiça continuada, p.310 –Este escrito é uma defesa na qual ele procura justificar-se das graves acusações retidas contra si. O assunto ía terminar em três anos de prisão e uma forte multa.
23 Criação da ordem, p.459 (1843).
24 Justiça, t.I, p.323 e s.
25 É assim que Chaudey, seu advogado, qualificaria a sua koral, por oposição à “moral religiosa”. (Justiça continuada, carta de 8 Maio de 1858, p.328).
26 Carnet VII (inédito); Corr., t.I, p.32, 57.
27 1ª Memória, p.119.

Sunday, April 15, 2007

PROUDHON E DEUS

“Penso em Deus desde que eu existo, confessa Pierre-Joseph Proudhon na sua importância filosófica, e não reconhece a mais ninguém senão a si o direito de a falar” (Justice, p.283). Ele relata que é esta continuada meditação que o conduziu à oposição do bloco rígido e encerramento do catolicismo da imanência revolucionária, sempre inalcançadas, da justiça.Assim um dos anticlericais mais impetuosos do seu século, o inventor do “anti-teísmo”, longe de ter partilhado a descrença ou a indiferença de tantos outros, nunca mais cessou, segundo as suas próprias declarações, de atacar o divino. Aliás, a obra é disso testemunha, da primeira linha até às últimas.Na verdade, o Deus com o qual ele se defronta assemelha-se mais ao Jeová tonante do Sinaï, quando este não está na “sua Natureza” de Espinoza, como aquele, transcendente e pessoal, da Trindade cristã. Mas será que se pode verdadeiramente manter um diálogo e um combate de toda uma vida face a um puro conceito? A luta com o anjo deste racionalista recupera muito mais mistério que a sua filosofia havia concedido. Esforcemo-nos, na medida do possível, de atravessar as sombras de uma presença que, sucessivamente se impõe e se oculta sem nunca explicar tudo feito pelo seu enigma irritante.Nascido nos dias seguintes à grande Revolução Francesa, numa família permanecendo fiel ao catolicismo popular, Pierre Joseph foi baptizado dois dias depois do seu nascimento na paróquia de Madeleine de Besançon. Sua mãe tão honrada, bem como filha de um irredutível rebelde em matéria religiosa e política (o famoso avô Tournési), era piedosa, sem beatice, adormecendo cada noite os seus filhos com uma leitura do Evangelho: cheia de uma fé autêntica. O pai parecia ter sido pouco fiel: num monólogo que dá sobre a sua morte, Proudhon fez uma espécie de estóico sobretudo como um verdadeiro cristão (o que, aliás, não é inteiramente contraditório). O lar do básico como quase tudo à sua volta vivia, sem maior conflito, no seio da religião tradicional.A infância de Proudhon inscreve-se portanto neste quadro, em desdém da miséria que foi muitas vezes o lote dos seus.Ele vai regularmente ao catecismo, é mesmo marcado pelo seu abade que o recomendara para ser inscrito no colégio. Aos onze anos, ele faz a sua primeira comunhão e recebe no mesmo dia a confirmação com, diz ele, “uma piedade sincera” (Carnet X, 501). O que poderia não ter sido como um conformismo social responde, sempre posterior ao seu testemunho, a uma inclinação íntima que se pode qualificar de mítica; “Eu sentia deus, escreve ele, eu tinha a alma penetrada; agarrei desde a infância esta grande ideia, ela abordava em mim e dominava todas as minhas faculdades” (Lettre de candidature). Disposição do coração pouco comum, pelo menos naquela época. Certamente, bem mais tarde, na furiosa carga contra o arquétipo que representa aos seus olhos o cardial Mathieu, ele representara-se como tendo ao mesmo tempo vencido com prazer num “panteísmo prático” e uma exaltação que ele diz “pagã oposta àquele absurdo espiritualismo que faz a base da educação e da vida cristã” (Justice, II,368).Não contestaremos mais: se esta má imagem ajusta-se com aquelas que nós temos contado, uma e outra podem muito bem ter mais ou menos coexistido. Dualidade que qualificaríamos, algures de banal.O que é certamente seguro é que, de modo não menos normal, este espírito por alguns lados ao menos profundamente religiosos conheceu também as suas primeiras dúvidas. Eles sobrevivem, diz-nos ele ainda, quase aos 15 anos de idade. A leitura, paradoxal somente nas palavras, do tratado da demonstração da existência de Deus de Fénelon, recebido a preço livre. Não somente os argumentos do célebre bispo parecem-lhe falíveis mas a revelação por essas páginas de que ele existe para os“ateus” mergulhava-o “na honra extraordinária” (Lettre de candidature). O nascido contraditor, o inimigo de todas as ideias recebidas era provocado.Enfim, bem mais que as suas inquietudes metafísicas, é a hipocrisia opressante e arrogante do clericalismo da restauração que o conduziu à revolta. Por um novo efeito boomerang, a missão pregada em 1825 em Besançon como na maior parte das cidades (ele tem então 16 anos), acaba por o afastar da religião. O ano seguinte, pela ocasião das festas da Jubilée, ele recusa pela primeira vez de confessar-se (o que confirma a sua prática regular até agora). Muito classificado, mas não sem dilaceração, o jovem homem rejeita as suas correntes contestando a lacuna entre a realidade e os valores proclamados.Ao seu redor ao longo dos anos seguintes, sob a influência de um primeiro amor do cujo nós não nos salvamos mesmo mais, não é menos clássico. É de certo modo o que Proudhon diz a si mesmo: ”Eu era cristão porque os amorosos, amorosos porque um cristão, eu posso dizer porque religiosos. A religião com efeito é a fé do absoluto, em todas as ordens do conhecimento e da sensibilidade “Carnet VIII, 1850”.Menos atendida é a observação que este jovem homem que “perdeu” pouco antes a fé, depois está voltado para um ambiente que ele apresenta como sentimental, mete-se a devorar as obras de teologia e de apologética, nomeadamente aquelas dos tradicionalistas cristãos Maistre e Bonald. Da mesma época a sua descoberta apaixonada pela Bíblia, que ele não cessará de ler e de anotar. Ela figura em primeiro lugar das suas fontes de inspiração privilegiadas, segundo a confissão feita a Langlois, o editor da Correspondência.Neste contexto onde a emoção está doravante ausente, ele acredita mesmo em algo começando a tornar-se “num apologista do cristianismo” (Lettre de candidature). Os primeiros trabalhos, “Essai de grammaire général (1837) e da Célébration du Dimanche”(1839) testemunhando uma parte. Seguidamente é ainda uma leitura religiosa aquela do “Essai sur l´indifférence” do primeiro Lamennais que o afasta definitivamente da fé católica.Será que Proudhon, deixou igualmente naquela época de se interessar por Deus e pela questão religiosa? Nunca. Em algumas citações da carta de candidatura para a Pension Suard, um ano anterior à celebração mostram-nos bem: a biografia intelectual que lá é retratada confirma ao contrário a permanência das suas preocupações em relação a este assunto.Sem dúvida, no prefácio da obra não somente o primeiro que ele reconhecia mas aquele onde se pode encontrar o princípio de toda a sua futura obra, a questão “O que é a religião?”, ele respondeu: “O sonho do espírito”, e aquela “O que é Deus?”: “Um X eterno”. Mas estas afirmações foram acrescentadas rapidamente na reedição de 1841. O teísmo do texto original, embora encobrindo uma última interpretação sociológica das prescrições mosaícas, devolvem-lhe o seu diferencial.A posição central de Pierre- Joseph Proudhon sobre estes problemas, na época dos escritores fundadores, é formulada em todas as primeiras páginas ( éd. Rivière 140-146 ) da”Mémoire sur la Propriété”. Constatando a universalidade do sentimento religioso, o autor interroga-se sobre a capacidade daquela de fundar uma morada social na perspectiva revolucionária. Resposta negativa. A argumentação que seguiu será retomada e completada depois mas não mudará quanto ao essencial. Ela apodera-se sobre esta dupla constatação: de um lado a existência ou não existência de Deus salva a demonstração científica que se impõe doravante; a outra, a absoluta teologia serve para justificar o absolutismo económico político em que o propósito da obra é justamente desmoralizar.Então ainda não tendo lido Feuerbach, Proudhon esboça a seguinte análise: “…depois de ter feito Deus à sua imagem, o homem quis ainda apropriá-lo; não contente de desfigurar o grande ser, ele trata-o como seu património, seu bem, sua coisa: Deus (…) torna-se acima de tudo propriedade do homem e do estado (p.141). Esta captação da divindade pelos poderes coloca-se ao mesmo tempo à sua própria justificação (“Omnis potetas a Deo”) e aquela da conservação da desigualdade, logo do pauperismo sem os quais os poderes não poderiam perpetuar-se.Assim, aos olhos do recente sociólogo, a dominação do homem por homem é ela própria homóloga à exploração do homem por homem. Ambas pretendem apoderar-se sobre o desenho da Providência, que teria desejado que a natureza pecadora nunca fosse submissa à autoridade soberana investida na terra do poder de Deus para corrigir a inclinação dos homens para o mal. Ora a revolução afirma exactamente o contrário. Ela deduz-se da percepção da justiça própria aos seres humanos e que a eles pertence promover. A propriedade sobre a sua forma absolutista, causa e produto da injustiça social, não desaparecerá que destruamos as bases teológicas.Aqui inscreve-se uma homenagem a Jesus, célebre nos termos entusiásticos como o grande profeta da igualdade e contando com o tal iniciador da primeira revolução da história. Proudhon não se pronuncia sobre a sua natureza divina denominando-a “Palavra de Deus”, transcrição literal da fórmula. Esta admiração, constantemente interrogativa, face à pessoa e à imagem daquele que ele venera como “a santidade da sua vida prodigiosa inteligência “(I.G., p. 307), é um tratado constante do nosso autor. Herdado da sua fé de juventude, este interesse não cessará de se afirmar ao longo da sua vida, complicando-se de hipóteses por vezes bizarras. Um grande livro tornou-se no fruto. O sucesso daquele de Renan e de outros factores, impediram Proudhon de o conduzir ao seu termo: ele arrepende-o vivamente. Poder-se-à transportar a montagem ao judicioso por aquele Robert Aron de tentar reconstruir a substância.Procura teórica, de uma ambição imensa, a “Création de l´ordre dans l´humanité” (1843) não podia esquivar os longos desenvolvimentos sobre os temas que viram a ser resumidos. O ponto de partida é, de novo, uma reflexão sobre a religião, sem a qual “a humanidade pereceu desde a origem” (p. 126). Este tributo devolvido, a convicção é de novo afirmada que, fundada sobre a autoridade e o imobilismo, a primeira religião é “incapaz de descobrir a ordem” (p. 46). É por isso, na sua incessante procura, a humanidade substitui-o pela filosofia. Mas a razão dedutível ela mesma é incapaz de dar conta da totalidade do real. É então que Proudhon fórmula a sua lei dos três estados – ele diz “momentos” – que faz suceder às duas primeiras épocas da humanidade – religião e filosofia – aquela da ciência, chamada metafísica.Desde então deus parece desaparecer do horizonte, com o objectivo da “série”,lei geral que governa o universo. Tanto mais que é assinado à economia política ciência recentemente descoberta pelo autor com uma sorte de êxtase um papel determinante na plena ocupação pelo homem do seu domínio próprio. Este aqui resulta do papel criador do trabalho humano, substituindo precisamente o que se atendia antigamente da única Providência divina: “Se, como os animais, o homem não impunha para trabalhar que as suas mãos, ou se, como Deus, ele movia e manipulava a matéria pela sua vontade, ele não faria ciência económica; a sociedade seria nula; qualquer coisa faltaria no universo. Só este significado, trabalho, contêm pois toda a ordem de conhecimentos” (criação 298). Ora, contrariamente a este anúncio, a obra seguinte, “Système des contradictions économiques ou philosophie de la misére” (1846), grande tratado que entende deixar as bases de uma ciência económica à fé rigorosa e revolucionária, não se situa apoderada sobre a posição da materialidade pura. Desde o prólogo, situado sob o signo de um epígrafo biblíco (destruam et aedificabo), Proudhon aborda com efeito o seu assunto de uma maneira acima de tudo, surpreendente, visto que o motivo condutor segue-o: “Eu tenho necessidade da hipótese de Deus”. Esta fórmula faz evidentemente eco à célebre resposta do astrónomo Laplace, dizendo a Napoleão que se admirava (descrente embebido contudo do deísmo das luzes) de não encontrar traço de Deus na sua “Mécanique céleste”: “Senhor, eu não tenho necessidade desta hipótese”. Eh! Bem no princípio de um livro à ambição científica, onde as “contradições” da economia vão substituir-se às “harmonias” providencialistas, Proudhon coloca esta questão de Deus de uma forma muito clássica. É o que pelo menos aparenta. O que não deixou de suscitar bons comentários.Ao longo dos 2 volumes, por outro lado, encontra-se um comentador porém benevolente, não falamos de Marx! – chamou-a”uma teodiceia invasora e enigmática”(Edouard Droz,P.J.Proudhon,1909). Por toda a parte, com efeito, o autor mostra fortemente a necessidade de ordem que o anima, sua recusa categórica de um azar equivalente para si como o absurdo. É assim que entre o capítulo do pagamento do imposto e aquele sobre a balança do comércio intercala-se aqui 25 páginas, de novo, relatam a Providência. Pode-se dar muitos outros exemplos. Mais tarde, o autor dirá por incidente: “Eu colocava-me no ponto de vista dos meus leitores” (Justice, III, 184).Mesmo fazendo parte das ideias que o rodeiam, esta precisão permanece insuficiente para dar conta da obstinação teológica de 1846. O leitor compreendendo somente, ainda que sem surpresa, a razão até ao fim do 1º tomo ele acerta sobre a fórmula famosa: “Deus é o mal!” (p.384). Jogando com o seu hábito do paradoxo. Proudhon revela porquê ele tinha tanta falta de Deus: simplesmente para o combater. Ele não nega o Absoluto, o que depois não tem sentido, mas recusa fazer apelo a uma intervenção exterior no domínio que ele reserva cruelmente à responsabilidade humana.Podia-se desde já lê-lo em todas as cartas no prólogo: “Eu tenho necessidade da hipótese de Deus para fundar a autoridade da ciência social” (C.E., 52). Depois tudo nem é de bom método. Somente esta afirmação, quase banal, o autor coloca-se a professá-la em termos onde a violência iconoclasta procura deliberadamente fazer escândalo, a fim de forçar a intenção. Tal é a sua maneira desde já bem conhecida, seu demónio secreto se assim o quisermos. Sem dúvida também um símbolo mais profundo.Sem nós para mover mais do que aquilo que lhe convinha, tentemos pois substituir a maldição sacrilégio numa coerência do razoável. Eis aqui as passagens essenciais: “Eu acreditava antigamente, diz Rousseau, que se podia ser um homem honesto e passar-se por Deus: mas já regressei deste erro.” Mesmo a base do raciocínio daquele de Voltaire, mesma justificação de intolerância: o homem faz o bem e não se abstém do mal que pela consideração de uma Providência que o vigia (…). E, para preencher o disparate, o mesmo homem que reclama assim para nossa virtude a sanção de uma Divindade remuneradora e vendedora, é também aquele que ensina como dogma de fé a bondade nativa do homem.E eu digo: o primeiro dever do homem inteligente e livre é de perseguir incessantemente a ideia de Deus de seu espírito e da sua consciência. Porque Deus, se ele existe, é essencialmente hostil à nossa natureza e nós revelamo-nos de modo algum à sua autoridade: Nós chegamos à ciência contra a sua vontade, à sociedade contra a sua vontade: cada um dos nossos progressos é uma vitória naquela que nós esmagamos a Divindade (…). Eu não censuro ao autor as coisas de me ter feito uma criatura desarmoniosa, um incoerente composto, eu não podia existir nesta condição. Eu contento-me de o apregoar: Porquê me enganas tu? Tu triunfavas, e ninguém ousava contradizer-te, quando, depois de o ter violentado no seu corpo e na sua alma o justo Job, figura da nossa humanidade, tu insultavas a sua piedade sincera (…). E agora eis que és destronado e despedaçado. Teu nome, se à muito é o último significado do erudito, a força do Príncipe, a esperança do pobre, o refúgio do culpado arrependido, eh bem! Este nome incomunicável, doravante visto ao engano e à maldição, será chamado por entre os homens. Por Deus, é loucura e cobardia; Deus é hipocrisia e mentira; Deus é tirania e miséria; Deus é o mal” (op.cit., pp.382-384).Com força, exagero mesmo, Proudhon não faz mais do que afirmar a autonomia do homem, a sua liberdade diante do próprio Deus. Visto que este Deus, de maneira incompreensível, deixou-nos presos com o mal, proibindo a nossa partida. Rendemo-nos ao mestre do nosso destino, sem dar à nossa inércia um álibi de uma Providência na qual ele manifesta que ela não saberia agir por nós. O mal por excelência é a demissão do homem. O pecado supremo é o abandono da fatalidade, baptizada com o nome da vontade divina. A negação da sua natureza que toda a alma bem nascida, todo o espírito que se quer científico, não pode combater com a última em vigor.O Deus da Bíblia e dos Evangelhos fez-lhes por outro lado um trabalho. Se ele existe não seria proibido ser um tirano mas a partilha do homem, criado “à sua imagem.”Sem trair o pensamento proudhoniano, um crente dos nossos dias pode interpretar neste sentido. Ele próprio não escrevia, ao mesmo tempo, ao seu editor Guillaumin: “…se Deus e o homem são opostos, eles são por isso mesmo necessários um ao outro, e (…) a sua existência é incompleta aos dois tanto que eles não são reconciliados”(21-1-46,Cor.,2,228).Concepção que está no coração da obra inteira: aquela da contradição criadora, da paz pelo conflito.Mas, para se opor, são precisos dois. Proudhon, repete-o, rejeitou sempre a qualificação do “ateu”. Dos textos múltiplos, de períodos diferentes, não são autorizadas nenhumas dúvidas a este respeito. Se ele recusa o nome, é em primeiro lugar porque ele não o estima como ciência: não se pode negar o desconhecido. Mas é também, provavelmente sobretudo, porque ele discerne no antiteísmo, com tanto que isto aqui é pura negação, uma forma de fatalismo (de”nihilismo”, diz ele na Justice III, 179), equivalente, mesmo que de sentido oposto, ao providencialismo desonrado.É toda a significação do termo de “antiteísmo”, à qual Proudhon tanto mantem. O episódio um pouco burlesco da sua iniciação maçónica, contada por ele próprio não sem jubilação (Justice), ilustra bem esta calma posição filosófica como uma bandeira. O 8 de Janeiro de 1847, quando o venerável da “Loge Sincérité, Parfaite Union e Constante Amitié” obriga-o, ritualmente, a responder à questão: “Qual o direito do homem no Grande Arquitecto do Universo?”, o novato responde: “A Guerra.” E ele comenta: “Guerra a Deus, ou seja, ao Absoluto”, o que não atenuava, neste local e nesta circunstância, o carácter impróprio da profissão da fé. Compreende-se que, mesmo não tendo cessado de se considerar como mestre, o autor nunca teria esquecido o grau de principiante.O que ele entendia exprimia nesta forma bélica, saltitante mesmo, é na posição não tanto de refúgio do que de orgulho independente ao respeito da Divindade. Mas mesmo a enormidade e a violência da maldição não traduzem alguma inquietude secreta? Não se dava tanta pena para amaldiçoar o nada.Se ele nunca admitiu o ateísmo, Proudhon interessou-se em contrapartida – provavelmente tentou – pela “religião do humano”, a tal que Feuerbach vinha a exortar. Nos mesmos anos onde se elaboravam as Contradições, Bakounine e sobretudo Grün, seu tradutor alemão, esforçaram-se para o persuadir que o hegelianismo é a filosofia de que ele tem falta, com a condição que ela seja pregada ao seu idealismo. E mais: seus amigos persuadiam Proudhon que ele tinha reencontrado por ele próprio os princípios da dialéctica, aplicada ao homem e não mais ao absoluto.É assim que Grün felicita-o calorosamente de ter cumprido “a negação da negação”, fim do fim da dialéctica, e vai até agora conceder-lhe o titulo de “Feuerbach francês”, lamentando todavia as suas modificações do “espírito religioso” (CF. Das Liberdades Sociais na Bélgica e na França, 1845). Os livros guardam o traço dos esforços do seu autor para se iniciar com um modo de pensamento à primeira vista próximo do seio mas o qual, não leram alemão, ele só tem acesso em segunda mão e através dos três intérpretes muito orientados.Preocupações que apareciam igualmente nas contradições, não somente pela forma- como aquela foi remarcada, a mais alemã encontrada no próprio autor – mas, entre outros, sobre o problema que nos ocupa. No prólogo já citado, Proudhon escreve com efeito :”se é incontestável que a humanidade, afirmando Deus o que quer sob o meu nome ou do espírito, não afirma que ela mesma “(p. 50); alusão clara de Feuerbach. Contudo ele acrescenta: “Não se saberia negar não mais que ela afirma-se então como outra que ela se conhecia”.Assim, ao mesmo tempo que elas fazem referência a algumas teses de (”L´Essence du Christianisme”, as Contradições destacam-se claramente. Desde a conclusão do tomo I onde era precisamente proclamado o antiteísmo, encontra-se uma severa crítica de “divinização da humanidade” e das suas consequências, discernadas no mesmo Feuerbach. O humanismo, diz Proudhon, é ainda uma ilusão religiosa, a mais temível já que ela conduz o homem a adora-se a ele próprio. Ou seja, a criar as condições de um fanatismo sem freio, como ele o censurará mais tarde ao culto do “Grande Ser” de Auguste Comte.Oposição particularmente clara nas anotações marginais trazidas a um artigo do refugiado alemão Ewerbech, que Grün lhe tinha comunicado. Quando Feuerbach escreve de uma forma peremptória: “A medida de organização de um ser é a medida da sua razão”, colocando esta razão como infinita no seio da espécie, Proudhon objectiva: “Falso. Nós veremos além do que é que nós devemos esperar”. E ele prossegue, sempre comentando as dissertações feuerbanianas:“A razão de um ser é o seu horizonte. Sim, mas esta razão pode exceder o ser e não mais concordar com ele e tal é o mistério da lembrança da espécie. E isso resulta precisamente da natureza da nossa consciência, da faculdade de crescer de género em género, de procurar o absoluto; faculdade que nos revela, por análise a nós mesmos, que nós somos o género superior, o mais perfeito da criação, mas não o absoluto. O humanismo é uma falsa religião (Citado por Daniel Halévy, Vida de Proudhon, p. 360 e retomado mais completamente por Haubtmann, I, 524).Seguidamente, nada neste pensamento sempre em movimento não sendo simples, ele chegará a exclamar no mesmo tempo de justiça: “ Deus é consciência da humanidade” (Justice, IV, 445). Faremos a parte das formulações que por vezes muito apertadas, como o seu autor ele mesmo admitido. O problema com o qual ele se desata é este aqui: a justiça é uma realidade especificamente humana e ao mesmo tempo ela deve escapar por algum lado humano “demasiado humano”. Imanente ao homem, ele é mais ou menos transcendente ou em todo caso contra a transcendência, naquela sorte. Ele existe mais longe do humano, sem o qual o homem com tanto que se explicaria e não existiria mesmo.Segundo esta perspectiva, a equação que Proudhon estabelece por vezes entre a justiça e Deus – “ A justiça é um ideal supremo oferecido à adoração dos homens sob o nome de Deus” – deve compreender-se ao que ele apela “ a categoria do ideal” , ou seja a sublimação pela inteligência de um princípio que ela pode atingir, nem mesmo conceber. Mas esta expressão ou pelo menos uma das outras, ele dá a uma interrogação permanente, pela qual alguma solução não é verdadeiramente adequada.Estimando mesmo tudo, ou pretendendo, ter isolado a questão de Deus, Proudhon não cessa portanto de encontrar a cada desvio do caminho. Sempre com provocações, suicidando-se mais ou menos claramente que o último significado está longe de ter sido dito. Assim com pena ele fórmula as teses provocatórias das contradições, onde ele admite que o seu antiteísmo, como por outro lado o conjunto dessas negações, apelam a uma contrapartida positiva. A testemunha curiosa confessa a um padre que a identidade é desconhecida: “A crítica que eu fiz da ideia de Deus é análoga a todas as críticas que fez da autoridade e da propriedade, etc. ; é uma negação sistemática, destinada a chegar a uma afirmação superior igualmente sistemática” (à l’abbe X, du 22-1-49, Cor., VI,114).Contemporâneo é o sermão público, talvez mais espantoso agora, pronunciado no banquete de inauguração do Banque du Peuple que se seguiu pouco famoso “Toast à la Révolution” : “Eu juro diante de Deus, diante dos homens, sobre o Envagelho e sobre a Constituição” (O povo, 31 de Janeiro de 1849, Obras, ed. Lacroix, VI, 260). De seguida, uma invocação, bem no tom da época mas não menos inspirada, no “Christ républican” cujo o orador inspirado reconhecia de uma certa forma a divindade: “É, como vocês sabem, o Deus do Evangelho, sempre o Deus dos pobres e dos operários, sempre o Deus dos oprimidos e dos pescadores, sempre o Deus de todos os sofrimentos (…). As concepções de Cristo são empreendidas de tanta grandeza e de santidade que elas esquecem infinitamente tudo o que há de melhor naquelas do homem. (…) Só Deus é o legislador das nações, porque ele é bom no supremo grau.” Calor comunicativo? Concessão aos sentimentos mais derramados junto dos seus auditores? Todas as exigências são permitidas. Talvez lhe seja mais simples de admitir que aquele que pronunciava estas palavras, marcadas aparentemente pela chancela da sinceridade, oscilava-lhe mesmo entre duas afirmações contraditórias que, no seu espírito, chegam a reconciliar-se um dia. De um lado a rejeição a Deus com tanto que um álibi de todas as opressões e por conseguinte a demissão do homem. Do outro a procura incansável de um valor supremo sem o qual a liberdade não tem sentido, a igualdade de existir. Sim com a orgulhosa afirmação de um antagonismo colocando o homem de igual para igual numa face a face com Deus. Mas não à destruição de todo o valor numa irrisória e ruinosa divinização do humano.O antiteísmo de Proudhon da primeira época poderia ser reatado aos três velhos da corrente da “teologia negativa” que, desde o século XIX, aos nossos dias, conheceu uma reviviscência. De origem platónica, depois retomada com as variantes de diversos pensadores cristãos, esta forma de pensamento é de essência mística. Esmagada pela transcendência divina, ela rejeita o debate sobre a “existência “de Deus que voltava a aplicar-lhe a condição das criaturas. A mesma noção de divindade é em si imensurável que seria mutilá-la, querer insultá-la, do que de a aplicar a um qualquer predicado. Deus é desconhecido por natureza, absolutamente. A única maneira, não de o conhecer – o que é impossível – mas de o reconhecer, de sondar o abismo que nos separa, é de rejeitar neste respeito uma formulação que seria por si própria uma limitação. É assim que um cristão atormentado como Kierkegaard, contemporâneo de Proudhon mas que não poderia ser seu conhecido, não hesita em escrever: “O cristianismo existe porque existe raiva entre Deus e os homens”, qualificando de “inimigo mortal” o absoluto refinado pelas instituições religiosas. Expressões admiravelmente parecidas aos pretendidos blasfémicos proudhonianos.A supor que ele havia conhecido a graça, Proudhon não se precipitou numa fé que, para a filosofia dinamarquesa, só era capaz de transpor de um salto do abismo do desconhecido. O Franc-Comtois suportou a angústia da oposição, não aquela da adoração. Acantonado o Absoluto, sem o negar, na esfera do desconhecido, ele coloca mais e mais o acento sobre o “tornando-se”, no lugar do “sendo”, sobre a tendência, não sobre um objectivo inatingível já que ele derruba-se cada vez que se pensa em atingi-lo.Separando-se radicalmente de um Feuerbach como do todos aqueles que fazem da Humanidade um infinito, Proudhon vê ao contrário a razão humana em que “progressão, sucessão, nunca simultaneidade nem plenitude” (comentário supra citado, ao artigo de Ewerbeck ). É assim que ele escreve na “Filosofia do Progresso”, obra capital para apanhar toda a sua evolução ulterior: “deus não pode mudar a sorte, é somente nesta condição que ele existe” (p.70). os dois estudos que compõem o livro são consagrados a demonstrar que o perfeccionismo da Humanidade nunca é somente adquirido mas não valeria conhecer alguma realização definitiva, pois todo o progresso acabado exige o seu próprio acabamento. Tal é a maneira proudhoniana de considerar o infinito.Esta concepção de uma imanência que suscita a sua própria transcendência é a trama do grande tratado “Da Justiça”. A afirmação da justiça como valor supremo, motor e objectivo da História, é o próprio do homem, à vez da sua primeira razão e seu fim. Tudo o que pretende procurar algures é o fundamento do trabalho e do direito – submissão vertical à divindade ou aspiração horizontal a uma fraternidade total – nega a especificidade da condição humana e, por consequência, impede todo o progresso.Desde então é o mesmo movimento da consciência humana, indissoluvelmente consciência de outrem, que se encontra – ou pelo menos que deve procurar-se – o absoluto.” Eu afirmo a Humanidade no lugar do ser supremo”, diz Proudhon para resumir o livro (a Tissot, de22-12-53,Cor.,v,299). E, na mancha do texto ele multiplica as fórmulas que retomam esta ideia central. Nós já temos citado uma entre elas, mas aqui aquela que contêm todas: “Deus é a consciência da Humanidade” (Justice 4,445). O absoluto não está na imanência mesmo que a imanência seja o fim – aqui há os dois sentidos do termo – do só absoluto que nós poderíamos atingir.Mas onde se situa a fonte desta premência, também universal bem como personalizada, da justiça? Atrás dos seus aforismos e das suas análises por vezes embaraçosas, Proudhon não cessa de andar à volta da mesma interrogação aborrecida. Na época de Contradições, ele confiava-a, dialogando consigo, num fragmento intitulado “Epílogo”, muito provavelmente destinado à conclusão do seu livro: “De onde vem esta paixão da justiça, que me atormenta e irrita-me, e indigna-me? Eu não posso justificar-me. É o meu Deus, a minha religião, meu todo; e se a começo a justificar pela razão filosófica, eu não o posso” (Carnet 1,226,março de 1846). Percebe-se no tremor do tom como a confissão é de um problema profundo e permanente.Em certos momentos, contudo, ele persuade-se que uma tamanha questão é vã e que a constatação da omnipresença, logo do valor operacional, da ideia da justiça tende a fundar a acção revolucionária. Aos outros instala-se não mais que a dúvida – sobre este ponto o duvidoso que era provado – mas, mais subtilmente um “tormento”, a insatisfação do seu espírito essencialmente metafísico face á questão das questões, que ele não pode resolver.Proudhon não só se impacienta de ser incapaz de responder, vendo bem tudo o que esta incapacidade reenvia-lhe para lá onde ele não quer sobretudo ir. Preso textualmente, o equivalente entre a justiça e o Absoluto não pode conduzir a esta religião da Humanidade cujo erro ele tinha denunciado.A falsa religião do humanismo, é o mesmo que dizer a adoração do homem por ele mesmo, deriva fatalmente contra uma “deificação da espécie”(C.E.2,174), cujo resultado não pode ser mais que a submissão dos valores à razão colectiva, sendo a negação da própria justiça. É isto que o autor de “Contradictions” tinha repudiado instintivamente na visão de Feuerbach, herdado do idealismo absoluto de Hegel. Se ele a criticou com tanto apreço a alienação religiosa de um cristianismo posto ao serviço dos poderes, era para admitir aquela que resultaria fatalmente do culto pretendido à justificação do poder total do Homem, quando este aqui havia sido revestido dos atributos da divindade? Escapa ao coração da grande revolução, o Terror não foi de outra causa e toda a obra proudhoniana é consagrada a denunciar esta perversão fatal.A questão central sobre o ser está, menos do que nunca, parado de trabalhar o Proudhon -mas não o resignou dos últimos anos. É então que ele se esforça por juntar os elementos acumulados do livro sobre Jesus, no qual ele pensava desde há muito tempo e que o enorme sucesso daquele Renan, aparecido em 1863,seria o estímulo a colocar no nítido. Igualmente ele está mais longe de admirar sem reservas esta adulteração da figura de Cristo.As suas aspirações profundas podem-no levar a acabar este livro da sua vida, no mesmo momento em que o absorve o enorme trabalho da redacção do seu último pensamento sobre o federalismo e o mutualismo. Tão importantes que eles sejam aos seus olhos, estes sujeitos não lhe parecem dizer a última palavra das suas investigações. Desde logo, nas “Notas e Pensamentos” da Pornocratie, redigidas por volta de 1859, ele revelava a sua questão de uma coroação espiritual: “É preciso que nós refaçamos da moral alguma coisa como um culto.” Nós podemos com as únicas forças do espírito dar uma teoria, definir o direito, formulando as aplicações… Mas substituir o coração, a alma…Nunca! Precisamos de outra coisa. É preciso regressar às fontes, procurar o divino, fortalecermo-nos numa veneração, que nos seja ao mesmo tempo uma felicidade. Nós procuramos qualquer coisa de místico, que contudo não choque a razão…mas que todavia a ultrapasse sempre”(éd.Rivière,pp.462-463,passim). Um pouco mais tarde, nas anotações da sua leitura renaniana, ele mata também “não poder escapar à obsessão do sobrenatural.” (Haubtmann,3,394).Preocupação demasiado evasiva, que o conduz a reler Feuerbach, aparentemente esquecido desde há muito, pois o seu próprio editor Lacroix em 1864 as primeiras traduções francesas da “Essência do cristianismo e da religião.” Proudhon doente e recolhido do trabalho, precipita-se sobre estas obras que o reconduziram perto de 20 anos antes. Segundo seu hábito, ele cobre-as minuciosamente de marcas.Suas reacções são, para o essencial, idênticas àquelas da época das Contradições e das discussões apaixonadas com os hegelianos. A atracção exercida pelo misticismo filosófico do escritor alemão ainda se sente. Mas acentua-se a hostilidade frente-a-frente da redacção ao humano demasiado fácil, quase “simplória”, segundo Proudhon operada a partir do divino. “Quanto mais eu leio e medito Feuerbach, escreve ele à margem do seu exemplar, mais eu me convenço que a religião choca qualquer mistério desconhecido.”Não só admite doravante sem revolta que “a ordem universal compõem-se da acção de Deus e daquela do homem” (op.cit.,398), sempre mantendo o antagonismo entre uma e outra acção, o antiteísta ordena se ele não existiria entre elas algum laço secreto: “Amar, é sofrer, dizia Santa Teresa. Dar tudo a quem se ama, eis a vontade suprema. Quão grande é o coração do homem, é preciso, de todo necessário dizendo bem de Deus.” (op.cit.,401). Ele insiste sobre este “profundo mistério.” (op.cit,399).Poder-se-à sempre falar de um sonho fugitivo, escapado de um homem no fim do seu curso. Quem ousará afirmá-lo?Em todo o caso o mesmo já tinha primeiramente um pouco, não sonhado mas escreve o que é fazer seu último pensamento sobre um sujeito indefinidamente meditado. Ela encontra-se no texto redigido com intenção de um certo Bouteville, professor de filosofia, que lhe havia sujeito seu manuscrito sobre “A moral da igreja e a moral natural.” Texto que por esta razão Haubtmann – que a publicou pela primeira vez em extenso (Proudhon, génese de um anti-teísta, Mame1969) – intitula por esta razão o “folheto Bouteville.” Então o que o autor reclamava da doutrina exposta nomeadamente na justiça, Proudhon responde à sua argumentação, ou seja, a contar a ele mesmo.“Eu creio que nem Boutteville, nem eu, nem os Pais, nem os ancestrais filosóficos não aprofundamos ainda suficientemente esta questão do princípio da justiça, que a igreja considera sobretudo em Deus, na sua subjectividade, e Cícero na natureza, na sua objectividade.O que é Deus? Não se pode conhecê-lo pelas únicas forças da razão. Notamos aqui: Há em Deus pelo menos uma coisa que nós podemos com experiência afirmar, é que a sua ideia possui-nos e trabalha-nos prodigiosamente. Sobre Deus nós não sabemos e não podemos nada saber pela razão (o que ele é, etc.) mas nós julgaremos, sobre uma experiência quotidiana, que ele tinha da continuação, da ordem, da finalidade, da harmonia na natureza; uma vontade que apareça/e, que pode, que resiste, que condena, etc.”O seguimento da passagem não é somente admirável mas perturbadora. Pela primeira e única vez sem dúvida, com esta intensidade, nós sentimos tremer? Alguma coisa que não é mais que um raciocínio, mas a uma presença forte: “Deus está disfarçado, mas mais uma vez ele está seguro que ele atormenta-nos, que a todo o momento nós acreditamos vê-lo aparecer; que ele nos parece entendê-lo a bater à porta; e que nós não nos podemos impedirmos de gritar: Quem vive? Quem está lá.”A resposta, ignoramo-la sempre. Mas sem saber se a porta está finalmente aberta para a criança insaciável do faubourg-Bettant, afirmamos ao menos que ele a terá desejado com uma paciência furiosa.