Sunday, December 31, 2006

REFLEXÕES SOBRE O MATERIALISMO DO SÉCULO XVIII

"O Materialismo e o ateísmo aparecem aqui como o resultado necessário da pura e activa consciência de si... O admirável nos escritos filosóficos franceses e que os torna importantes é a sua espantosa energia, a força do conceito em luta contra a existência, contra a fé, contra todo o poder da autoridade, estabelecida há milhares de anos. É o seu carácter que é admirável, esse sentimento da mais profunda indignação contra a aceitação de tudo o que era estranho à consciência de si, daquilo que pretende existir sem ela, e onde ela própria se não encontra, é uma certeza da verdade racional que desafia o mundo das ideias aceites e que tem a certeza da sua destruição. Isso levou de vencida todos os preconceitos e triunfos deles." HEGEL, Lições sobre a história da Filosofia.1.Há já cerca de dez anos que a nossa atenção filosófica se sentiu atraída pela obra do socialista libertário P.J. Proudhon. Neste espaço de tempo, muito de parcialmente conclusivo foi possível atingir. Entre outras coisas, de que o pensamento filosófico, político, económico, social do autor de A capacidade Política das Classes Operárias sofre influência directa do chamado socialismo utópico, nomenclatura que lhe pertence, e indirectamente do chamado materialismo do século XVIII, objecto de estudo do presente artigo. Como Proudhon se insere no conjunto dos filósofos que ontologicamente falando são chamados de materialistas, torna-se-me pertinente analisar as condições de possibilidade e simultaneamente de limitações do materialismo filosófico anterior ao materialismo do século XIX.Daí referirmo-nos ao materialismo françês que nomeadamente encontramos presente na Enciclopédia a partir de 1751, data do primeiro volume. Na realidade, quando dizemos materialismo do século XVIII, queremos dizer materialismo françês do século XVIII pois na verdade, os filósofos materialistas mais importantes deste século são franceses. Pode-se argumentar com Holbach que é de origem alemã, o que é correcto, mas de qualquer das maneiras não invalida a tese geral atrás enunciada. Holbach era alemão, mas foi muito cedo para França e a sua obra mais importante e mais influente é o Système de la Nature escrita como o título indica, em françês.Se nos vamos debruçar sobre o materialismo será então importante perguntar, antes de mais nada, o que é o materialismo no sentido filosófico habitual? (1)2.O Materialismo é a antítese do idealismo.(2) O idealismo procura explicar todos os fenómenos naturais, todas as propriedades da matéria, por esta ou aquela propriedade do espírito. O materialismo opera precisamente ao contrário: ele procura explicar os fenómenos psíquicos por esta ou aquela propriedade da matéria, esta ou aquela particularidade orgânica do corpo humano ou animal. Todos os filósofos para quem o dado primeiro é a matéria pertencem ao campo dos materialistas e todos aqueles para quem o espirito é o dado primeiro pertencem ao campo dos idealistas. Isto é tudo o que se pode dizer do materialismo em geral, do materialismo no sentido filosófico habitual; porque o tempo edificou com base nele estruturas tão diversas que elas conferem ao materialismo de cada época um aspecto que o diferencia completamente do materialismo das outras épocas.(3)Materialismo e idealismo a isto reduzem as grandes direcções do pensamento filosófico. É verdade que quase sempre existiram paralelamente sistemas dualistas que consideravam o espírito e a matéria como substâncias distintas e independentes. Mas o dualismo nunca pode fornecer uma resposta satisfatória a uma questão impossível de iludir: como é que duas substâncias distintas, que não possuem nada de comum entre si, podem exercer influência uma sobre a outra? Por isso os pensadores mais consequentes e mais profundos se inclinaram sempre para o monismo, isto é, para a explicação dos fenómenos por um único princípio fundamental.(4)Todo o idealista consequente é monista acontecendo o mesmo com todo o materialista consequente. Nesta perspectiva, não há qualquer diferença entre Barkeley, por exemplo, e Holbach. O primeiro foi um idealista consequente, o segundo um materialista não menos consequente, mas um e outro foram também monista; e, tanto um como o outro, se aperceberam igualmente da impotência dos sistemas dualistas, os mais divulgados, até aos nossos dias.A primeira metade do século XIX viu o reinado do monismo idealista em filosofia; a segunda metade assistiu, no domínio da ciência ao triunfo de um monismo materialista que, de resto, nem sempre é lógico nem confessado.3.Não cabe aqui expor em pormenor a história do materialismo. Bastará aos nossos propósitos considerar o seu desenvolvimento a partir da segunda metade do século XVIII. E, ainda aí, nos importa sobretudo examinar uma das correntes - na verdade a principal: o materialismo de Holbach, de Helvetius e dos seus adeptos.Os materialistas desta tendência mantiveram uma polémica acesa com os pensadores oficiais da época, os quais, invocando Descartes sem nunca lá chegarem a compreendê-lo, pretendiam que existem no homem certas ideias inatas, isto é, independentes da experiência. Na sua refutação desta teoria, os materialistas franceses não mais fizeram do que retomar a doutrina de Locke que, desde os fins do século XVII, tinha demonstrado que não existem ideias inatas. Mas, ao retomarem esta tese, conferiram-lhe um aspecto mais sistemático; puseram os pontos nos ii em que Locke, como liberal inglês bem educado, não tinha querido tocar. Indo até ao fim das suas ideias, eles foram sensualistas intrépidos, quer dizer, consideram todas as funções psíquicas do homem como modificações da sensação.Inútil pôr-se aqui a questão de saber até que ponto, neste ou naquele caso, os seus argumentos permanecem válidos à luz da ciência actual. É evidente que os materialistas franceses ignoravam muitas das coisas que hoje um simples estudante conhece: referimo-nos antes de mais às teorias físicas e químicas do Holbach, no entanto absolutamente ao corrente das ciências da natureza do seu tempo. Pelo menos eles tiveram o mérito incontestável de encaminhar o seu pensamento logicamente do ponto de vista da ciência da sua época; e é tudo o que de direito se pode exigir a um pensador. Não surpreende que a ciência contemporânea tenha ultrapassado os materialistas franceses do século XVIII; mas o que importa é que os adversários destes filósofos estavam em atraso relativamente à ciência do seu tempo.4.Certos historiadores da filosofia têm o costume de opor às concepções dos materialistas franceses as de Kant, cujos conhecimentos científicos de modo algum podem negar-se. Mas esta oposição peca por absoluta falta de base. Provar-se-ia sem custo que Kant e os materialistas franceses partiram do mesmo princípio, mas desenvolveram-no de maneiras diferentes, chegando assim a conclusões diferentes sob a acção das sociedade desiguais em que um e outros viveram e pensaram.Seja como for, sabe-se que os materialistas franceses consideravam o conjunto da actividade psíquica do homem como uma modificação da sensação. E considerar a actividade psíquica deste ponto de vista significa aceitar que a totalidade das representações, dos conceitos e dos sentimentos é engendrada pela acção do meio exterior sobre o homem. Era exactamente assim que eles encaravam a questão. Sem se cansar, apaixonadamente e da maneira mais categórica, eles proclamaram que, com todas as suas ideias e todos os seus sentimentos, o homem é aquilo que o meio faz dele, isto é, em primeiro lugar a natureza e, em segundo lugar, a sociedade.(5)Esta concepção do homem como produto do meio fornece aos materialistas franceses o seu principal fundamento teórico para reclamar reformas. Se o homem depende, com efeito, do meio exterior e lhe deve todas as particularidades do seu carácter, deve-lhe também os seus defeitos; se se quer lutar contra estes, torna-se pois necessário modificar consequentemente o meio, mais exactamente o meio social, porquanto a natureza não faz o homem nem bom nem mau. Coloque-se este homem numa sociedade razoável, ou seja, em condições em que o instinto de conservação deixe de empurrar cada um para a luta contra todos, harmonizem-se os interesses do indivíduo com os da sociedade inteira, e a virtude aparecerá naturalmente, tal como uma pedra, privada do ponto de apoio, cai por si mesma.A virtude não se prega; prepara-se através de um ajustamento razoável da sociedade. Os materialistas franceses devem aos bons ofícios dos conservadores e dos reaccionários do século passado que se persista em considerar a sua moral de egoísmo. Com muito mais razão definiram-na eles como uma moral que se confunde inteiramente com a política.5.A teoria segundo a qual a vida de espírito é um produto do meio conduziu por vezes os materialistas franceses a conclusões inesperadas, mesmo para eles próprios. Assim , eles pretenderam, por exemplo, que as ideias do homem não têm influência absolutamente nenhuma sobre o seu comportamento e que, na sequência disto, a difusão desta ou daquela ideia numa sociedade não poderia modificar a sua história um milímetro que fosse. Se as ideias de um ser humano são determinadas pelo meio que o cerca, as da humanidade, no seu devir histórico, são-no pela evolução do meio social, pela história das sociedades. Se quiséssemos descrever "o progresso da razão" sem nos limitarmos à questão "como?" (como é que a razão se desenvolveu históricamente), mas colocando-nos também e tão natural "porquê" (porque é que este desenvolvimento se verificou assim e não doutra maneira?), deveríamos começar pela história do meio, pela história da evolução das sociedades. O centro de gravidade deslocar-se-ia assim, pelo menos de início, para a pesquisa das leis da evolução social. Os materialistas franceses chegaram até este problema, mas longe de saberem resolvê-lo, nem sequer souberam colocá-lo correctamente.Quando chegou a altura de tratar da evolução histórica da humanidade, esqueceram a sua teoria sensualista do Homem com "H" grande e, à maneira de todos os "espíritos esclarecidos" do tempo, pretenderam que "cést l'opinion qui governe le monde", isto é, as sociedades humanas. É aqui que reside a contradição inicial do materialismo no século XVIII. É nos raciocínios dos partidários deste, ela fraccionou-se numa série de contradições derivadas, de contradições secundárias comparáveis aos trocos de uma nota de banco.Temos por exemplo a tese de que o homem, com a totalidade das suas opiniões, é o produto do meio, essencialmente do meio social. É a consequência inelutável do princípio de Locke: "no innate principles", não há ideias inatas. Em contrapartida temos a tese que diz o meio, com a totalidade das suas propriedades, é o produto da opinião. É a consequência inelutável do princípio da filosofia da história dos materialistas franceses: c'est l'opinion qui governe le monde.Desta contradição decorre um certo número de contradições derivadas: por um lado o homem considera boas as formas sociais que lhe são úteis; considera más as que lhe são prejudiciais. Por outro temos que as formas em questão aparecem aos homens úteis ou prejudiciais segundo o sistema das usa opiniões. No fim de contas, tudo se resume pois, uma vez mais, à opinião que governa o muno.Temos ainda que por uma lado é um erro grosseiro supor que a moral religiosa, por exemplo, o preceito do amor pelo próximo, contribui mesmo numa pequena parte, para melhorar os costumes. Preconceitos desta natureza, como, de resto as ideias em geral, não têm poder sobre o homem. Tudo depende do meio social, do estado da sociedade.(6) Mas por outro lado e como nos mostra a experiência histórica, é admissível admitir o contrário pois se as opiniões em geral governam o mundo, as opiniões falsas dirigem-no à maneira de tiranos. Não seria difícil alongar esta lista de contradições que o materialismo françês nos legou.6.Só que há contradições e contradições. Há efectivamente contradições estéreis e tem a ver com a maneira como as perspectivamos. Mas existe um outro género de contradições. Distinguem-se das primeiras porque não adormecem o espirito humano nem retardam o seu progresso, mas impelem-se para diante, e por vezes com tanta força que se revelam mais fecundas, quanto às suas consequências, que as teorias mais harmoniosas. Poder-se-ia retomar a este respeito a fórmula de Hegel: "Der Widerspruch ist das Fortleitende".(7) E é nesta categoria que é preciso classificar as contradições do materialismo françês do século XVIII.Detenhamo-nos sobre a contradição inicial: é o mais que determina as opiniões; são as opiniões que determinam o meio. A este respeito deve dizer-se o que Kant dizia das suas antinomias: a tese é tão válida como a antítese.(8) Não se poderia, com efeito, pôr em dúvida que o meio social determina as opiniões. E é também fora de dúvida que nenhum povo aceitaria uma ordem social contrária à totalidade das suas opiniões sem se insurgir contra essa ordem, remodelando-a à sua maneira. Deve, pois, reconhecer-se também que a opinião governa o mundo. Mas como podem duas proposições, verdadeiras em si mesmas, contradizer-se? A coisa explica-se muito simplesmente. Elas só se contradizem pelo facto de nós as considerarmos do ponto de vista errado: deste ponto de vista, parece - e deve absolutamente parecer - que, se a tese é verdadeira, a antítese é falsa, e reciprocamente. Mas que se encontre o ponto de vista certo e a contradição desaparecerá, cada uma das proposições que nos embaraçava revestirá um aspecto novo: descobrir-se-á que uma completa a outra, mais exactamente, que ela a condiciona, sem de modo algum a excluir, que se esta proposição era falsa, a outra também o seria, embora de início nos tivesse parecido antagónica.Como encontrar esse ponto de vista certo? Tomemos um exemplo. Muitas vezes se disse, sobretudo no século XVIII, que o regime político de um povo é condicionado pelos costumes deste. E é perfeitamente justo. Quando os antigos costumes republicanos dos romanos desapareceram, a república cedeu o lugar à monarquia. Mas, por outro lado, sustentou-se, com não menos frequência, que os costumes de um povo são condicionados pelo seu regime político. E isto também não pode pôr-se em dúvida. É perfeitamente claro até à evidência que os costumes dos romanos do Império deviam constituir algo de contraditório relativamente aos antigos costumes republicanos. E assim se chega a esta conclusão: que o regime é condicionado pelos costumes e que os costumes o são pelo regime. Mas esta conclusão é contraditória. Fomos sem dúvida levados a ela porque uma das duas proposições é falsa. Qual delas? Por muito que quebremos a cabeça a pensar no assunto, não se encontrará qualquer erro nem na primeira nem na segunda; uma e outra são irrepreensíveis, porque, realmente, os costumes de um povo agem sobre o seu regime político e, neste sentido, constituem a sua causa, ao passo que, por outro lado elas são condicionados por esse regime em relação ao qual, neste sentido, constituem o efeito. Onde procurar a saída então? Nas questões deste género, contentemo-nos normalmente em descobrir uma interacção: os costumes influem na constituição; a constituição influi nos costumes; tudo se torna claro como o dia; e aqueles a quem esta limpidez não satisfaz, demonstram a mais lamentável inclinação para uma estreiteza de espírito. Encara-se a vida social sob o ângulo da interacção: cada um dos aspectos da vida age sobre todos os outros e sofre-lhes, por sua vez, a acção.7.Os filósofos do século XVIII também se inclinavam para este ponto de vista quando sentiam a necessidade de pôr em ordem as suas concepções da vida das sociedades e resolver as contradições que os consumiam. É neste ponto de vista de interacção que se detém, por exemplo, Montesquieu em obras tão célebres como Grandeza e Decadência dos Romanos ou Do Espírito das Leis.(9)O ponto de vista é, sem dúvida, justo: existe incondicionalmente interacção entre todos os aspectos da vida social. Infelizmente, este ponto de vista justo esclarece muito pouco, pela simples razão de que não fornece nenhuma indicação quanto à origem das forças que exercem essa interacção. Se o regime político pressupõe os costumes sobre os quais age, não é a ele, evidentemente que esses costumes devem a sua aparição. E o mesmo raciocínio vale para os costumes: se eles pressupõem o regime sobre o qual agem, não foram eles, manifestamente, que o criaram. Para sair desta aparente confusão, temos que encontrar o factor histórico que produziu simultaneamente os costumes de um dado povo e o seu regime político, criando ao mesmo tempo a possibilidade da sua interacção. Se descobrimos este factor, encontraremos o ponto de vista certo, objecto da nossa reflexão, e poderemos então resolver sem dificuldade a antinomia que nos embaraça.Aplicado à contradição inicial do materialismo francês, vejamos o que isto significa: os materialistas franceses enganavam-se redondamente quando, contradizendo a sua concepção habitual da história, pretendiam que as ideias não são nada, porque o meio seria tudo, mas não é menor o erro existente na sua concepção habitual da história que faz da opinião a causa principal, fundamental, da existência de qualquer meio social dado. Existe, sem dúvida, interacção entre a opinião e o meio. Mas uma análise científica não pode limitar-se a reconhecer esta interacção, visto que esta não nos explica de modo algum os fenómenos sociais.Para compreender a história da humanidade - no caso presente, a história das sua opiniões por uma lado e, por outro lado, a história das sociedades que ela conheceu no decurso da sua evolução - é preciso ultrapassar o ponto de vista da interacção, é preciso descobrir, se a coisa é possível, o factor que determina ao mesmo tempo a evolução do meio social e a evolução das opiniões. Cabia às ciências do século XIX a descoberta deste factor.(10)8.É a opinião que governa o mundo. Mas a opinião não permanece invariável. O que é que preside à sua modificação? " A difusão das Luzes", respondia La Mothe le Vayer no século XVII. É a expressão mais abstracta e mais superficial da ideia do poder universal da opinião. Os filósofos do século XVIII agarraram-se firmemente a este conceito, completando-o por vezes com generalidades melancólicas sobre a sorte, infelizmente pouco certa, da luzes. Mas nota-se já entre os espíritos mais esclarecidos e isso é indesmentível, a consciência do que há de insuficiente numa tal concepção. Helvetius indica que o progresso dos conhecimentos está sujeito a leis, e que, consequentemente, há causas ocultas, causas desconhecidas de que esse progresso depende. Ele faz mesmo uma tentativa altamente interessante, e cujo verdadeiro mérito não foi ainda apreciado, para explicar a evolução social e intelectual da humanidade pelas suas necessidades materiais. Mas esta tentativa encerra-se finalmente por um fracasso. E, por muitas razões, não teria podido encerrar-se de outra maneira. Pelo menos permaneceria como uma espécie de legado testamentário para os pensadores do século seguinte que quisessem prosseguir a obra dos materialistas franceses.Notas:(1) Palavra que surge em 1702 mas só realmente na segunda metade dessa centúria se afirma com audácia, passando do circuito clandestino para o domínio público, abandonado o estatuto privado para se apresentar com estatuto nacional que irá conservar e até reforçar no tempo do Directório e dos Ideólogos. Sinal desse progresso é a aparição da palavra em 1752, no dicionário de Trévoux, o antídoto da Enciclopédia: "dogma muito perigoso segundo o qual alguns filósofos, indignos de tal nome, pretendem que tudo é matéria, negando a imortalidade da alma". E a Academia, por sua vez, dá guarida à palavra na quarta edição do seu Dicionário, em 1762: "Opinião dos que não admitem outra substância além da matéria."(2) A grande preocupação dos materialistas do século XVIII foi de estabelecer a unidade material do mundo e por isso combater sem mercê o dualismo cristão. Na medida em que tal dualismo contradizia a concepção unitária do homem e da natureza, e levando até às máximas consequências a lógica do homem e da natureza, e levando até às máximas consequências a lógica do seu pensamento, devotaram-se à crítica radical da existência de Deus e do espiritualismo.(3) Em relação ao materialismo do século XVIII e em síntese, pode dizer-se que os filósofos levaram tão longe quanto possível a negação dos valores religiosos tradicionais e a afirmação das virtualidades humanas: graças à ciência, os homens seriam capazes de obterem acerca de mesmos e do mundo, suficiente conhecimento para criarem condições de vida mais feliz.No conjunto, os materialistas franceses rejeitam tanto o deísmo como panteísmo, São ateus. E na história das ideias, a sua originalidade repousa, em grande parte, no ateísmo militante.(4) "Monos" vem do grego que quer dizer único.(5) "L'homme est tout éducation" assevera Helvetius, que entende por educação o conjunto da influência social.(6) Encontra-se várias vezes esta tese de Holbach na sua obra mais importante Le Systéme de la Nature. Helvetius exprime também a mesma ideia.(7) "A contradição é o que faz andar para a frente."(8) Esta tese Kantiana marcará, mais tarde, o pensamento proudhoniano do Sistema de Contradições Económicas.(9) Na sua Politique Naturelle, Holbach sustenta o ponto de vista da interacção entre os costumes e o regime político. Mas, quando chega a altura de tratar de questões práticas, este ponto de vista encerra-o num círculo vicioso: para melhorar os costumes, é preciso melhorar o regime, e para melhorar o regime, é preciso melhorar os costumes. Ele remove a dificuldade fazendo intervir o "bom princípio" caro a certos filósofos que, desta maneira, resolve a contradição melhoran simultaneamente os costumes e o regime político.(10)Neste sentido é indiscutível o predomínio dos fundadores da Sociologia. O sociólogo George Gurvitch, autor sobejamente conhecido, considerou serem em número de três: Saint-Simon, Proudhon e Marx.

ERA PROUDHON UM FEDERALISTA INTEGRAL?

Para tratar do meu assunto, bastará comentar uma carta de Proudhon, depois de ter sublinhado que ele sempre teve uma sensibilidade muito viva para agarrartão bem os aspectos particulares das coisas que o ligam unindo-os uns aos outros. Ele possuía, instintivamente, um espírito dialéctico. O seu pensamento, atenta em procurar a diversidade na unidade, permanece sempre contudo global, integral; ela nunca está dividida, limitada, ou especializada. Alguma dúvida sobre o feito que, desde que ele seja convertido da anarquia ao federalismo – como ele prórpio o admite abertamente escrevendo a 2 de Novembro de 1862 a Milliet (1) – ele entende ser um federalismo integral.
Todavia, parece que Proudhon havia cumprido o integralismo de duas maneiras diferentes e que se excluem na teoria, sem que ele nunca tenha parecido dar conta da sua diferença nem da sua oposição. Também se pode encontrar no seu pensamento duas concepções de integralismo, bem como as conexões arbitrárias, quando este não é uma verdadeira e real confusão, entre as duas formas de ver. Ora existe uma carta onde este aspecto do seu pensamento manifesta-se com grande evidência. Este texto chamará a atenção de Sainte-Beuve que o publica com muitas outras na sua obra sobre Proudhon, aparecendo na Revista Contemporânea, depois posteriormente em volume (2). Esta carta é assim apresentada: “Proudhon lá respondeu (à carta de Antoine Gauthier sobre as suas duas primeiras memórias) por uma carta que é uma das mais curiosas e das mais essenciais, o que ela mostra ao natural e à franqueza da cordialidade “franc-comtoise”, bom compadre e companheiro, e também sabendo reduzir muito bem, quando lhe convinha, a sua utopia ao mínimo, não a mostrando mais como uma perfeição ideal num longínquo indefinido, e indincando de perto as únicas medidas de reforma que ele designava para o apresentar. Não se sabia nada de concreto nem de mais sincero”. Eu estou de acordo sobre a precisão e sobre a sinceridade, de modo nenhum sobre a redução da utopia ao mínimo. Eu vejo, pelo contrário, uma contradição. De algum modo, eis as passagens essenciais da carta (as itálicas e as maiúsculas estão no texto publicado por Sainte-Beuve):
“Tu exiges-me explicações sobre o modo de reconstituir a sociedade. Eu quero responder em poucas palavras e tentar dar-te a este respeito, as ideias justas.
“Desde que leste o meu livro, tu deves compreender que ele não se agita imediatamente a imaginar, combinar no nosso cérebro um sistema que nós apresentaremos de seguida; não é assim que se reforma o mundo. A sociedade não se pode corrigir por ela própria, ou seja, é preciso estudar a natureza humana em todas as suas manifestações, nas leis, nas religiões, nos costumes, na ecónomia política; extrair desta enorme massa, pelas operações da metafísica (3) o que é verdadeiro, eliminar o que é vicioso, falso ou incompleto, e todos os elementos conservados, formar os príncipios gerais que servem as regras. Este trabalho levará séculos até ir de encontro ao seu complemento.
“Isto parece-te desesperante; mas tranquiliza-te. Em toda a reforma, existem duas coisas distintas: a transição e a perfeição ou a conclusão.
“A primeira é que a sociedade actual seja chamada a operar: e bem! Esta transição, sobre que príncipios iremos nós realizá-la? –Tu encontrarás a resposta a esta questão combinado em conjunto algumas passagens da minha Segunda Memória (páginas 10-11) (4), converter todas as rendas, e, generalizando-os, baixar a taxa de todos os lucros; p.16, reforma da banca;p.28-29, emissão de capital ao pequeno interesse, reforma nos bancários; p.33-37, abolição progressiva das alfândegas; p.179, atacar a propriedade pelo interesse; p.184, id., etc.
“Tu concedes que um sistema de abolição progressivo ao que eu chamo de fortuna, é o mesmo que dizer pensões, rendas, aluguer, grandes tratamentos, concorrência, etc., ficaria quase sem efeito da propriedade, pois, se ela é nociva, é sobretudo por interesse.
“Mas esta abolição progressiva não seria mais que uma negação do mal, mas não mais uma organização positiva. Ora, para isto, meu caro amigo, eu posso muito bem dar os príncipios e as leis gerais, mas, só, eu não posso chegar a todos os detalhes. É um trabalho que absorveria cinquenta Montesquieu. Pela minha parte, eu daria os axiomas, eu forneceria os exemplos e um método, eu meteria a coisa em andamento; cabe ao mundo fazer o resto.
“Assim, eu acredito que ninguém sobre a terra é capaz, como se quis dizer de Sainte-Simon e de Fourier, de dar um sistema composto de todas as peças e completo, não se fez mais do que jogar. É a mensagem mais detestável que se pode apresentar aos homens, e é por isso que eu sou um forte opositor do Fourierismo. A ciência social é infinita: nenhum homem a possuí, mais ainda que nenhum homem sabe de medicina, da física ou das matemáticas. Mas nós podemos descobrir os príncipios, depois os elementos, depois uma parte que irá sempre crescendo. Ora o que eu faço imediatamente é determinar os elementos da ciência política e legislativa.
“Por exemplo, eu mantenho o direito de sucessão, e eu quero a igualdade: como conciliar isso? É aqui que é preciso entrar na organização. Este problema será resolvido na Terceira Memória, com muitos outros. Neste momento eu não posso dizer tudo: faltariam-me vinte páginas.
“Enfim, se a política e a legislação são uma ciência, tu compreendes que os príncipios podem ser muito simples, às perceptíveis inteligências, mas que, para chegar à solução de algumas questões de detalhe ou de uma ordem superior, é preciso uma série de racíocinios e de instruções todas elas análogas aos cálculos pelos quais se determina o movimento dos astros. É isso mesmo que eu te digo das dificuldades da ciência social, será uma das coisas mais curiosas da minha Terceira Memória, e que provará o melhor da boa fé e a nulidade das invenções políticas.
“Em duas palavras: abolir progressivamente e até à extinção da alfândega, eis a transição. –A organização resultará do príncipio da divisão do trabalho e da força colectiva, combinada com o manter da personalidade no homem e do cidadão (…).
“O essencial hoje em dia é fixar os teus olhares sobre a propriedade e de resumir toda a política interior na questão da abolição, e a política exterior naquela das alfândegas. Tudo está lá: o resto corrigir-se-á por ele próprio…”

COMO EVOLUÍ A SOCIEDADE?
O essencial da primeira concepção do integralismo basea-se sobre a ideia, claramente formulada, segundo a qual “a sociedade não se pode corrigir por ele própria”: a segunda, pelo contrário, sobre a afirmação que qualquer um pode fazer alguma coisa para corrigir a sociedade: “abolir progressivamente e até à extinção da fortuna”. O deslize da primeira à segunda concepção reside no recurso arbitrário à ideia que em toda a reforma, existem dois aspectos: “a transição e a perfeição ou conclusão”, o que permite a Proudhon compreender a “transição” uma vez como um simples trabalho negativo. (“a negação do mal”) e uma outra vez como o feito essencial: “O essencial hoje em dia é fixar os teus olhares sobre a propriedade e de resumir toda a política interior na questão da abolição, e a política exterior nas alfândegas. Tudo está lá: o resto corrigir-se-à por ele próprio”.
É neste momento que se contacta, segundo eu, a confusão entre as duas concepções. A “transição”tornou-se o todo: na primeira fórmula, o que se corrige por si-próprio é a “sociedade”, na segunda, é o “resto”. O desabamento é completo, mas Proudhon não se apercebe que o verbo “corrigir” não tem o mesmo assunto. Ele não se apercebe mais do feito que na primeira fórmula, agita-se no assunto – a sociedade – que se corrige de si própria, ou seja que ele agita-se na segunda fórmula, ele agita-se no assunto – o resto – privado de todo o carácter, onde a correcção é também ela um fim, uma operação inteiramente passiva que se efectua como movimento metido em marcha de exterior. “Eu meteria a coisa em andamento; cabe ao mundo fazer o resto”.
E, feito significativo sobre aquele que regressaria: na primeira perspectiva, a política, muitas vezes junto de Proudhon, é considerada como estéril (“a mutilidade das invenções políticas”) então na segunda, ela torna-se tudo (o essencial traduz-se por um problema de política interior: a abolição da fortuna, e da política exterior; a abolição das alfândegas; operações que no bom direito Proudhon chama de políticas porque elas reclamam as medidas legislativas, por conseguinte a intervenção do poder político).
Lá diz, é preciso examinar cuidadosamente o ponto sobre o qual as duas concepções se contradizem. “A sociedade corrige-se por si própria” significa que ninguém pode corrigí-la pois a sua evolução depende do concurso de todos. “Basta-lhe abolir a fortuna, e o fim far-se-à por si mesmo”, isso significa pelo contrário que a sociedade não se corrige ela própria, pois as suas modificações essenciais são consequência da intervenção de uma parte ela própria numericamente muito falível: o herói e a sua comitiva, o monarca e os seus dignatários, o partido político e os seus militantes, o revolucionário e seus companheiros; em todos os casos, um punhado de pessoas.
E eis-nos no ponto preciso onde se situa a contradição: ninguém pode modificar a situação social de todos (a sociedade); qualquer um pode modificar a situação social de todos. Esta contradição sonha com uma importância particular quando ele se agita no benefício da teoria com a prática.
O feito que a sociedade desenvolve por si mesma não impediria, pelo menos em teoria, que qualquer um pudesse conhecer inteiramente a sua evolução. Mas isso impediria-o de certeza, de impôr esta evolução social ao que este foi. Com efeito aquele que seguria esta prescrição não se agitaria mais pela sua própria vontade mas seria movido por aquela de um outro; se isso chegasse entretanto a acontecer, uma parcela da sociedade – e por conseguinte a sociedade considerada como um todo – não evoluiria mais por si própria, contráriamente à hipótese inicial.
Este racíocinio é exacto. Ele parece-me, uma fé despojada da sua rigidez e uma fé que tinha esclarecido que concerna os seus aspectos permanentes e importantes do comportamento social. É um feito que as grandes perturbações podem ser provocados pelo poder de um pequeno número. Mas estas perturbações são precárias e provisórias. Todos aqueles que modificam a sua conduta, não antes da sua razão e da sua vontade, mas antes das solicitações exteriores, chegam ao seu estado precedente quando esta solicitação vêm a faltar. Por esta razão, as modificações sociais obtidas sem o auxílio de todos são instáveis, e por conseguinte, em última análise, sem importância.
Assim esclarecida, a primeira concepção do integralismo parece-me exacta. Mas, aplicada com rectidão, ela não oferece um verdadeiro critério para a acção social (social no sentido alargado: político, económico, jurídico, etc.). ela permite acima de tudo a pervenção que a acção. Isso não significa que ela faça obstáculo à acção social. Ela facilita-a pelo contrário, mas unicamente no que ela facilita o conhecimento particular que serve à acção social. E como este conhecimento é aquele da situação no qual cada um se encontra entre outros – que o condicionam e que não partilham inteiramente a sua concepção global – está visto, nesta hipótese, que no lugar de impôr aos outros a nossa concepção, nós aceitemô-la sem a fazer nossa. Logo, se esta concepção é exacta, é certo também que, nós alargaríamos mais o cerco do nosso conhecimento em direcção á totalidade, nós devemos aceitar mais os outros na sua diversidade. Tudo isso parece-me não somente verdadeiro mas profundamente bom. Se o conhecimento global podia transmudar-se na acção social, o detentor deste conhecimento chegaria a dispôr de todos os outros, e a liberdade de cada um seria destruída. A liberdade de todos exige que o conhecimento global se traduza exclusivamente em acções individuais, na vida interior, não na vida social. O conhecimento é indispensável à acção, e vice-versa. Mas o homem, ser imperfeito, não pode possuir o conhecimento até ao fim sem perder a acção, como de outra parte, ele não pode possuir a acção até ao fim sem perder o conhecimento, e sem afundar-se na pura bestialidade.
Efectivamente, toca-se, falando do integralismo, no limite da condição humana; e, a meu ver, não é preciso admirar-se, se a este ponto, ele manifesta uma contradição, uma obscuridade, um mistério. Do ponto de vista da razão, não lhe resta mais neste grau que aceitar a dialética da propriedade, ou seja, a concepção da dialética do amado director desta revista, onde se lirá o exposto aqui-antes.

A POLÍTICA NÃO É O CONHECIMENTO GLOBAL
Em conclusão, a primeira concepção do integralismo, que indevidamente, Proudhon confunde com a segunda, não excluí a acção social mas favorece-a, na condição entretanto de não ter a pretensão de a transformar numa directiva rígida da acção, na condição portanto de saber se destacar quando se tenta elevar o conhecimento aos mais altos cumes. A acção seria então imposta, ou seja uma acção estéril. E a segunda? Como é que se determina, na segunda concepção, o benefício teórico-prático? De maneira absolutamente oposta. Nesta perspectiva o conhecimento, nomeado, que ele seja justo –será tanto mais justo que será global – deveria constituir o critério da acção social. Nada mais, mesmo quando só um pequeno número a possuí, mesmo quando esta acção é querida por uma só pessoa e recusada por todas as outras; pois, nesta hipótese, a sociedade pode ser modificada por alguns, e por conseguinte os outros – aqueles que não possuem o justo conhecimento – não contam.
Mas ele só se agita de uma visão do espírito. Do ponto de vista social, o homem sozinho é condenado. Aquele que fica na minoria, seriaela uma minoria substancial, é ultrapassada. Ele não pode agir. Se ele não se resigna, não lhe resta mais que a estéril agitação no vazio, a caricatura da acção. A meu ver, isso demonstra que não somente a segunda concepção do integralismo excluí a acção social, mais também que ela é falsa pois não pode alcançar somente ao seu objecto-teórico, o conhecimento integral. É um feito que qualquer um tenta isolar-se na sua experiência e, portanto, agir segundo esta concepção, passa ao lado dos outros sem lhe dar conta, sem os conhecer; e não conhecer os outros, é nada conhecer senão a sua própria alucinação.
O que eu digo até aqui tem uma importância particular no que diz respeito à política. A política pertence ao domínio da acção do pequeno número sobre a massa. Ela não devia então procurar transformar a sociedade. Ele não pode fazê-lo, e, se, tomado pela euforia, ela tenta-o, contudo ela não pode arrastar as perturbações, nunca as mudanças reais e verdadeiras. Por conseguinte, ela não se pode basear sobre o conhecimento global, mas somente sobre um conhecimento particular: o conhecimento das situações e dos problemas do poder. No meu sentido, isso queria para o federalismo também, na medida onde o federalismo tem o dever político de destruir as instituições da centralização e do encerramento, para fundar aquelas da abertura e do pluralismo (5).
Isso não quer dizer que o federalismo não o seja mais ainda. Eu creio doravante que ele pode elevar-se à altura de um conhecimento global. Mas, neste caso, mesmo que ele possa ser uma ajuda aos conhecimentos, particulariedades indispensáveis à acção social, ele não pode, a meu ver, traduzir-se na acção, mas somente na previsão. A precisão, creio eu, que desta forma, e farão doravante no futuro, os homens mesmo que eles se agitem espontaneamente, ou seja, no conhecimento do novo curso de história.

Notas

1 - Terá-se lido esta citação na conclusão do artigo de Benard Voyenne sobre o federalismo de Proudhon
2 - C.A.Sainte-Beuve: P.-J.Proudhon, sua vida e sua correspondência 1838-1848, Paris, Calmann-Lévy, 1872, Nova edição, Paris, Alfred Costes, 1947. A passagem citada figura nas páginas 151, sq.
3 - No vocabulário de Proudhon, “metafísica” significa “filosofia positiva” (M.A.)
4 - Ele agita-se, bem entendido, numa referência à paginação da edição original.
5 - Este fenómeno representa bem sem dúvida uma mudança social, e a este ponto, poder-se-á pensar que eu também, como Proudhon, contradigo-me. Depois de ter afirmado que o pequeno número não pode transformar a sociedade, e que os políticos são sempre este pequeno número, imediatamente eu diria que os políticos (os federalistas) poderiam transformar esta sociedade.
Todavia, eu mantenho que o pequeno número – no qual os políticos, federalistas ou não – não podem mudar o carácter profundo da sociedade, ou seja o comportamento social dos individuos. É-me necessário precisar a minha concepção da mutuação social. A sociedade transforma-se pela mudança do comportamento de todos os seus membros. Ele agita-se de mudanças onde cada um introduz um elemento novo, mas no qual reflecte-se, no que diz respeito à particulariedade da sua acção, o conjunto das particulariedades das acções dos outros. A política, também ela, é um anel desta corrente. A prova está no feito pois, ao passo que ele é verdadeiro que ela é uma acção do pequeno número sobre o grande número, ele também é exacto que este pequeno número se conforma mais que algum outro nas exigências do grande número, no sentido dos seus vícios quando ele acusa os homens do Estado. Com efeito, como diz a saga popular, e como o sabe aquele que tem a experiência política, o poder só se adquere na medida onde se adapta a sua própria conduta às necessidades e às aspirações dos outros.
O que nos interessa, é o mesmo que dizer que, na Europa, não se poderá nem destruir as instituições da centralização e do encerramento, nem criar aquelas da abertura e do pluralismo por uma luta política, na medida onde será descoberta a forma de luta adequada, e somente se a conduta dos europeus está em vias de adquirir realmente, nos mais importantes sectores da vida social, estas características.

O PRINCÍPIO FEDERATIVO

O Princípio Federativo teve uma primeira tradução em português em 1874, embora incompleta, pois só a primeira parte conheceu a língua de Camões. O tradutor, A. J. Nunes Junior, deu-lhe o título de "Do Princípio de Federação" e segue a tradução castelhana de 1872 de Pi y Margall , o grande responsável pela divulgação do pensamento de Proudhon no país da C.N.T. e tradutor de várias das suas obras.O Princípio Federativo, livro saído em Fevereiro de 1863 no editor Dentu de Paris, tem 324 páginas na edição original. Ignoramos a tiragem inicial, mas sabemos por uma carta de Proudhon que no dia 5 de Março de 1863, ou seja, somente uma quinzena de dias após a sua saída, o livro já estava no seu sexto milhar. Compreende um prefácio e uma conclusão e trinta e um capítulos agrupados em três partes: primeira parte - "Do Princípio de Federação" (onze capítulos); segunda parte - "Política Unitária" (onze capítulos); terceira parte; "A Imprensa Unitária" (nove capítulos). O subtitulo: Da necessidade de reconstruir o partido da Revolução é a sobrevivência da intenção inicial, que se queria essencialmente prática e mobilizadora; o título cobre, ao contrário, o tratado teórico resultante de modificações ulteriores.Também é igualmente verdade que o livro é importante porque é o primeiro - e permanece o principal - daqueles que trataram o Federalismo não somente, enquanto sistema de ultrapassagem das soberanias, mas como princípio geral de organização da sociedade. A esse título Proudhon tinha razão ao afirmar que tinha dado aí a "sua definição de República, definição que ficou no estado de desideratum , tão pouco conhecida ainda que os próprios Suíços e Americanos não tiveram até aqui senão uma consciência bastante imperfeita do seu próprio estado" .É esta íntima convicção de ter produzido uma obra profundamente original, ocupando o seu lugar no pequeno número das grandes teorias políticas, que o fará escrever "... acabo enfim de terminar uma verdadeira exposição filosófica do princípio federativo, uma das coisas mais fortes e novas que produzi" .IIA partir de 1858, mais consciente da importância das relações políticas internacionais, Proudhon prossegue a crítica do Estado centralizado (o que vem fazendo desde 1839) mas opõe-lhe, não mais a destruição dos governos, mas a sua limitação num sistema federal . Parece?lhe que a garantia das liberdades deve ser procurada, não somente na negação das autoridades, mas numa organização complexa onde se encontrarão limitadas e reciprocamente contrabalançadas as autoridades e as liberdades. O Federalismo responderia a esta complexidade das dialécticas desde que ele fosse concebido, não como um simples sistema político, mas como um sistema total sócio-económico, onde os múltiplos grupos seriam os livres criadores das suas relações económicas e políticas. O problema que se coloca a Proudhon, no momento em que se interroga sobre a constituição social dos grupos nacionais e sobre as relações internacionais, diz respeito simultaneamente à organização económica e à organização política. Na sociedade desigualitária do regime proprietário, o político constituía?se por oposição à sociedade económica e para dominar os conflitos de classe que a desigualdade suscitava. Pelo contrário, numa sociedade socialista, onde a livre solidariedade uniria os indivíduos e os grupos, o direito público, longe de se opor à sociedade económica, deveria admitir os princípios e não fazer mais que prolongar a organização económica. Os princípios económicos, contratualismo, mutualismo devem estar no fundamento do direito público e reproduzirem-se identicamente: o equilíbrio dinâmico instituído na organização económica deve reencontrar-se na organização política: a mutualidade económica transpõe?se na política sob o nome de Federalismo . A concepção federal dos grupos nacionais opõe ao unitarismo centralizador uma visão pluralista de sociedade: enquanto que a tradição monárquica ou jacobina não concebe o bem social que sob a forma de absorção das partes numa centralização única, o federalismo opõe-se a toda a centralização e respeita a autonomia dos agrupamentos particulares. Não se trata já de assegurar a unidade ao preço das liberdades mas assegurar ao mesmo tempo a unidade e as liberdades na unidade.IIIO federalismo implica não só uma identidade de forma entre a organização económica e a organização política mas também uma distinção entre uma e outra: supõe que os grupos produtores, longe de abandonarem os seus direitos a uma autoridade ávida de se desenvolver, conservariam os seus poderes de decisão económica e não encontrariam no Estado senão um meio de expressão ou de estímulo. O federalismo, colocando o princípio da limitação do poder central pelos poderes particulares e os agrupamentos locais, quebra o dogma da razão de Estado e a tendência comum dos Estados à concentração. Deixando de ser o único pólo de autoridade, o poder político deixa de ser o dono da sociedade, não é mais que um dos focos de acção social entre outros. As fórmulas que Proudhon empregava em relação a este assunto no seu período particularmente anarquista (anterior a 1858) permanecem aplicáveis ao federalismo: o Estado, organizado à imagem da sociedade económica e reproduzindo a sua forma essencial, encontra?se limitado nos seus poderes pelos produtores e agrupamentos de produção, mas mais exactamente subalternizado pela sociedade económica no seu conjunto. Longe de aparecer como o órgão central da sociedade e o seu único meio de coesão, as funções do Estado não são mais que sub?funções, duma sociedade de produtores. Proudhon esboça o plano destes centros autónomos que irão limitar o poder político ao nível dos agrupamentos profissionais e das soberanias locais. Segundo um projecto elaborado desde 1848 , as oficinas e as companhias industriais organizadas, por elas próprias democraticamente, seriam conduzidas a federarem?se por profissões e por indústrias para constituírem uma forma de centralização ao nível nacional. Esta federação de indústrias asseguraria as necessidades de independência dos agrupamentos visto que as relações ficariam fundadas sobre contratos entre grupos, e responderiam às exigências modernas da coordenação. Mas não é mais, no seio duma sociedade federada, que um tipo de agrupamento autónomo: considerando as relações entre os grupos locais, Proudhon insiste na independência relativa que devem conservar as comunas e as diferentes regiões. Contrariamente à tendência centralizadora que não cessa de reduzir a soberania das comunas, importa reconhecer esta forma de autonomia .No federalismo, a comuna, grupo local e natural, readquire a sua soberania; ela tem o direito de se governar, de se administrar, de dispor das suas propriedades, de fixar os impostos, de organizar a educação, de fazer a sua própria polícia. Deve reconstituir uma verdadeira vida colectiva, o que implica que os problemas sejam debatidos, que os interesses se pronunciem, que os regulamentos internos sejam discutidos e escolhidos. Este aspecto é, aos olhos de Proudhon, decisivo: não se trata somente de reconhecer uma certa limitação do Estado pela presença dos agrupamentos, mas afirmar a pluralidade das soberanias e por conseguinte a liberdade efectiva da comuna. Se não fazemos mais que reconhecer algumas liberdades municipais no interior de um sistema regido segundo as regras da centralização, os conflitos não deixarão de se produzir entre as comunas e o Estado e o poder mais forte não deixará de obter decisão favorável, prosseguindo a história da degradação das comunas. Só uma organização federativa afirmando o princípio da pluralidade das soberanias poderia respeitar a soberania da comuna e restituir deste modo a plenitude da vida colectiva aos fundamentos da sociedade .IVO federalismo implica, por outro lado, que seja restituída às regiões e às províncias uma parte da sua autonomia, quer dizer que os grupos naturais unidos por uma comunidade de dialecto, de costumes ou de religião readquirem esta autonomia relativa que a centralização absorvente lhes fez perder. O grupo natural formado pela comunidade local, identidade de costumes e a conexão dos interesses é, com efeito, uma realidade social mais viva que os grupos artificiais formados pelos Estados. Aí também, a teoria federativa do Estado se opõe totalmente à concepção unitarista; raciocina?se na concepção unitária, em termos de força e de redução das liberdades: partindo do princípio que a sociedade não subsiste por ela própria, mas pela autoridade, conclui?se que é necessário, antes de tudo, constituir um Estado que imporá a disciplina e a obediência. Toda a diversidade sendo interpretada como um sinal de insubordinação, é?se levado a pensar que a unidade só é assegurada pela destruição das particularidades e a constituição de um conjunto homogéneo e sem diferenciação. Se se souber ao contrário que um grupo social existe por ele próprio, assegura a sua coesão, vive e pensa como um ser orgânico, desenvolve as suas possibilidades à medida da sua liberdade, concluir?se?á que um conjunto nacional poderá estar mais certo da sua estabilidade se os grupos naturais forem mais autónomos. O agrupamento nacional não será, pois, mais uma unidade homogénea e dominada, mas uma federação ou mais exactamente uma confederação de Estados. Proudhon também iria desenvolver as mais rigorosas críticas contra o "príncipe des nationalités" que tinha, no entanto, o apoio quase unânime da opinião pública. Com efeito, o nacionalismo, pondo o acento tónico na independência nacional e portanto na unidade do Estado, pode ter, sob as aparências de um progresso, consequências contra?revolucionárias: reforçando o Estado e a centralização, tende?se a constituir nestas aglomerações artificiais cuja consequência será impedir a revolução económica segundo a lei várias vezes sublinhada que a centralização tende a impedir a mutação social .À reinvindicação nacionalista e unitária, Proudhon opõe uma confederação das regiões e das províncias, a única capaz de respeitar as nacionalidades locais. Em relação às perigosas discussões sobre o tema das fronteiras naturais, Proudhon será crítico, no seu princípio, mostrando que em geral as fronteiras não são mais que criações artificiais da política: os verdadeiros limites não são aqueles que se estabeleceu por qualquer decisão de um poder, mas aqueles que um grupo delineou e modificou à medida do seu desenvolvimento e da sua prática espontânea. O federalismo aplicar?se?ia enfim às relações entre os povos, e, do mesmo modo que o sistema unitário de inspiração monárquica transporta em si mesmo a necessidade de afrontamentos militares, uma organização confederal dos Estados conduziria ao estabelecimento da paz. Esta confederação seria possível se unisse estados de pequena dimensão, eles próprios federados interiormente: com efeito, um estado extenso, onde os laços reais são tanto mais frouxos quanto as dimensões são vastas, será sempre levado a reforçar os poderes centrais para compensar a ausência de unidade espontânea. Estes Estados demasiado vastos são, pela sua constituição social, levados à centralização e portanto à guerra. Entre as nações médias, pelo contrário, poderiam estabelecer?se relações comparáveis às relações mutualistas e portanto pacíficas.A evicção da guerra entre nações derivaria da instauração de um pacto federal entre nações, e, mais profundamente, da federação no interior de cada Estado: a distribuição dos poderes e a reciprocidade mutualista, tendo como efeito destruir as possibilidades de dominação. Assim, sem acreditar que a Europa pudesse constituir uma única confederação, Proudhon sublinha que o desaparecimento das guerras está subordinado ao advento de um Estado federal europeu .Esta teoria política releva muito mais do doutrinal que do sociológico. Proudhon não ignora como são poderosas as tendências económicas e ideológicas que empurram à centralização política e confessa que é necessário, neste domínio, inverter a tendência frequente. No entanto, e como em toda a sua obra, a doutrina funda?se sobre uma teoria social que convém precisar: é a este nível que podemos examinar se Proudhon não renegou em parte o seu anarquismo nos seus últimos escritos. Podemos com efeito perguntar se o federalismo não vem reintroduzir sob uma nova forma o que o anarquismo tinha radicalmente negado: a constituição política.VO federalismo funda?se sobre uma leitura essencialmente pluralista da sociedade e sobre as relações positivas estabelecidas entre a diversidade e a vitalidade, entre a unidade e a opressão. Quer se trate de actividade de produção, de circulação ou de vida política, Proudhon não cessa de pensar que se desenha uma relação constante entre a pluralidade e o movimento, o unificado e o imóvel. Assim é da essência do Estado centralizado de introduzir um obstáculo à mudança, um factor de reacção, do facto do seu carácter unitário. O federalismo aparece como uma técnica permitindo respeitar a pluralidade e logo a livre iniciativa dos grupos sociais e as suas liberdades. Mais exactamente, o pluralismo é essencial à realidade social desalienada: o federalismo não é uma técnica preferível, susceptível de trazer mais bem?estar ou liberdade aos produtores, ele é a expressão da realidade social. Proudhon não erra ao reconhecer que o unitarismo e o federalismo não cessam de se manifestar na história como duas possibilidades concretas, mas acrescenta que a centralização autoritária revestiu um carácter artificial que sublinha os seus defeitos. Considerada na sua realidade viva, a sociedade é ao mesmo tempo una e múltipla, mas é pela sua multiplicidade que ela vive e progride: a vitalidade social, com efeito, não vem de um centro director, faz?se da circunstância e por exemplo dos contratos entre produtores distintos que procuram livremente os seus interesses. O movimento social é resultante das próprias bases da sociedade e mais precisamente das múltiplas iniciativas tomadas pelos produtores e as companhias de produtores. Do mesmo modo que esta pluralidade de iniciativas seria respeitada e encontraria os órgãos da sua expressão, a sociedade poderia evitar os conflitos e os antagonismos que ela não cessou de encontrar no passado.A teoria federativa permanece fiel ao projecto proudhoniano de sublinhar a espontaneidade do Ser colectivo por oposição às teorias estatistas ou religiosas. Quer se trate de denunciar a improdutividade do capital, o conservatismo estatista ou a alienação religiosa, Proudhon esforça?se por encontrar o movimento social autónomo e emanante nas suas transformações e nas suas criações. Mas no seu período anarquista, sublinhando que a espontaneidade social vem inteira da organização das forças económicas, tende a tomar como modelo desta organização as relações interindividuais: os exemplos escolhidos para ilustrar o contrato económico sobressaem numa grande medida das trocas privadas. Ao descrever a organização federal, a federação agrícola?industrial, Proudhon insiste muito mais sobre as relações entre os grupos do mesmo modo que sublinha muito mais do que em 1848 a importância das companhias operárias encarregadas de gerir as grandes indústrias e os grandes trabalhos . Mas, sobretudo, Proudhon introduz a noção de "grupo natural" que vem completar a pluralidade dos agrupamentos espontâneos no plano geográfico. Assim, a concepção federativa acentua muito mais, que a realidade social é feita de múltiplos agrupamentos qualitativamente diferentes, geográficos, económicos, culturais, políticos, espontaneamente soberanos, onde o indivíduo se encontra empenhado. Desenvolvendo esta teoria das federações e das confederações, Proudhon fica fiel ao seu método dialéctico e particularmente à sua teoria dialéctica dos equilíbrios. A espontaneidade dos diferentes agrupamentos é assegurada se se estabelecer entre eles relações de equilibração ou as tendências expansivas de cada um se encontrarem travadas pela autonomia dos outros grupos. O federalismo deve confirmar esta realidade das lutas e das oposições procurando equilibrá?las: longe de impor à vida social uma síntese asfixiante, convém assegurar o pleno desenvolvimento das forças por um jogo de equilíbrios sem hierarquia. A dialéctica negativa do federalismo confirmaria o carácter pluralista e antigovernamental da espontaneidade social. No entanto, Proudhon introduz pela organização política uma dialéctica que repelia no seu período anarquista, a da autoridade e a da liberdade . Nesse caso, anteriormente exprimia uma recusa total das autoridades e afirmava que a actividade do trabalho era por si mesma um incessante protesto contra a autoridade, reconhece ao contrário aos fundamentos do federalismo uma antinomia onde a autoridade constitui um dos dois termos. A evolução do seu pensamento não pode ser aqui apresentada por falta manifesta de espaço: Parte de uma interpretação largamente polémica que nada concede a um poder político, Proudhon reintroduz pelo federalismo uma forma de autoridade local ou central. Todavia, a noção de autoridade possui na organização federal uma significação radicalmente diferente daquela que ele tinha nos Estados tradicionais: quando o contrato político que devia fundar os Estados fazia?se por um abandono da autonomia, o contrato federativo seria um contrato limitado no seu objecto, salvaguardando a soberania dos indivíduos e dos grupos excepto pelo objecto especial pelo qual ele é formado. Os grupos federados não se comprometeriam senão a governarem?se na base do mutualismo, a entenderem?se a respeito das suas actividades económicas, a prestar assistência nas dificuldades, a protegerem?se contra o inimigo de fora e a tirania de dentro .VIAssim concebido, o poder central nada teria de uma autoridade exterior à vida social, seria somente o órgão de coordenação dos interesses locais: os delegados não seriam investidos de um poder particular, não teriam por função senão confrontar os interesses e procurar a harmonização por via de concessões mutualistas. O conselho central deixa então de constituir um Estado, é o órgão da mutualidade e não constitui mais que um dos termos da actividade social. Proudhon prossegue desta maneira a constante preocupação de destruir tudo o que poderia revestir qualquer carácter de exterioridade em relação à totalidade social: destruindo o Estado, ou, não dando ao poder central senão uma função particular entre outras funções, restituir?se?ia à sociedade tudo o que ela é: a destruição das alienações devolveria à vida social tudo o que lhe tinha sido extorquido.O Estado não é mais, por conseguinte, nesta sociedade devolvida a ela própria, que o resultado dos interesses; retoma, apesar disso, um papel relativo de iniciador. Após ter afirmado no período anarquista que o Estado autoritário e centralizado era, por essência, imobilista e incapaz de participar na progressão social, Proudhon pensa agora que um Estado federal e pluralista teria a possibilidade de assumir um papel activo e relativamente criador. O Estado não saberia substituir?se às forças económicas e aos grupos de produção para a execução dos trabalhos, mas assume um papel de criação nas iniciativas, nas decisões económicas e nos projectos . Assim a dialéctica entre a sociedade e o Estado, que era, nas obras do período 1848?1852, a dialéctica contraditória da opressão e da submissão, cede lugar a uma dialéctica complementar, onde se encontra reconhecido o papel inovador de um conselho central. O Estado só intervém para promover e escolher, deve em seguida abster?se, mas tem bem um papel provisório de criação.Se esta evolução marca bem uma correcção trazida às teorias políticas anteriores, não implica uma revisão das teorias sociológicas. A denúncia do Estado centralizado num regime proprietário subsiste inteiramente assim como a análise dos seus determinismos de expansão e de concentração. Mas Proudhon opina que uma instituição vê os caracteres e as necessidades transformarem?se totalmente logo que ela é inserida numa estrutura global diferente. Que o Estado de uma sociedade desigualitária seja necessariamente alienante e opressiva não implica que um conselho central conserve as mesmas características numa totalidade diferente. As estruturas globais de uma totalidade impõem a sua necessidade particular às partes e às instituições. A antinomia das classes e a anarquia industrial tornam necessário um Estado forte e opressivo, como a organização federal das forças económicas e a pluralidade das entidades soberanas tornam necessário um poder central pacífico e sem superioridade de poder. Numa tal estrutura social, a própria noção de governo perde o seu sentido tradicional assim como o seu prestígio e os mitos que o rodeiam; não é mais que um dos maquinismos, uma das funções, duma sociedade igualitária. Esta relatividade histórica da instituição sublinha de novo como a reforma política está subordinada: a mutação revolucionária não consiste numa simples revisão constitucional, exige uma subversão da sociedade na sua forma geral, quer dizer nas suas relações sócio?económicas: a organização das forças sociais e das forças económicas imporão novas funções às instituições particulares, e determinará as características e o seu funcionamento.

A DIALÉCTICA E O SOCIAL EM PROUDHON

"Sou um revolucionário e não um desordeiro."Carta de 4 de Março de 1842.
"Prego a emancipação dos proletários, a associação aos trabalhadores. Incito à revolução por todos os meios... a palavra, a escrita, a imprensa, as acções e os exemplos...Sim, sou reformador, digo-o tal como o penso, de boa fé, e para que esta vaidade nunca me seja censurada; quero converter o mundo."De La Création de l'ordre dans l'Humanité."Ter um sistema, não tenho; repugna-me formalmente tal suposição; O sistema da humanidade só será conhecido no fim da humanidade... O que me interessa, é reconhecer-lhe o rumo e, se puder, traçá-lo.
"Correspondance - Le Peuple, artigo de 21 de Março de 1849."Os comunistas estão comigo, embora eu não seja comunista, e estou com eles, porque, sem que eles o saibam, não são mais comunistas do que eu.""Escrevo pois para os que têm necessidade de justificar teoricamente qualquer princípio. Escrevo, enfim, para os socialistas investigadores e de espírito livre. Vou indagar se a comunidade, que no espirito de alguns compreende tudo, abrange tudo, acode a tudo, etc, não é simplesmente - como a propriedade, o crédito, a concorrência, a divisão do trabalho - uma das molas da máquina social."Carnet - 2 de Outubro de 1845."Procuremos em conjunto, se quiser, as leis da sociedade, o modo como essas leis se realizam, o desenvolvimento segundo o qual conseguiremos descobri-las; mas, por Deus! Depois de termos demolido todos os dogmatismos a priori, não pensemos nós em doutrinar o povo; não caiamos na contradição do seu compatriota Martin Luther, que, depois de ter arrasado a teologia católica, começou imediatamente, à força de excomunhões e anátemas, a criar uma teologia protestante... Uma vez que estamos à cabeça do movimento, não nos tornemos chefes de uma nova intolerância, não nos apresentemos como apóstolos de uma nova religião, mesmo que seja a religião da lógica, a religião da razão. Acolhemos, encorajamos, todos os protestos; desânimos todas as exclusões, todos os misticismos; não consideremos nunca uma questão como esgotada, e, quando tivermos usado até ao nosso último argumento, recomecemos, se for preciso, com eloquência e ironia.Com esta condição, entrarei, com prazer, na sua associação; caso contrário, não!"Carta a Karl Marx, 17 de Maio de 1846."Tudo muda, tudo corre, tudo se transforma, consequentemente, tudo se mantém e se encadeia; por conseguinte, tudo é oposição, oscilação, equilíbrio no universo.""Para alguém que observe de perto o momento da civilização, o progresso aparece como uma imensa corrente dialéctica."Idée Générale de la Révolution au XIX siécle."O mundo da sociedade, do mesmo modo que o mundo da natureza, é estabelecido a partir de forças... as forças são, por si próprias, expansivas, invasoras, por conseguinte, opostas e antagónicas: tal é a grande lei da criação, sendo, ao mesmo tempo, a lei da conservação e da renovação dos seres."La Guerre et la Paix."Do mesmo modo que a vida supõe a contradição, a contradição, por sua vez, apela para a justiça; daí a segunda lei da criação e da humanidade: a penetração mútua dos elementos antagonistas, a reciprocidade."Solution du Problème Social."Toda a verdade de conjunto implica série entre vários termos, isto é, relação."La Pornocratie ou les Femmes dans les Temps Modernes." O conceito de unidade... não é outro senão a intuição da série, ou de termos da série. O espírito distingue, em primeiro lugar, uma série, isto é, um grupo circunscrito, uma totalidade determinada; depois, nesta totalidade reconhece partes e adquire o princípio de pluralidade; finalmente, apreendendo quer a relação de identidade que as une, quer a própria parte, chega ao conceito de unidade."De la Création de l'Ordre dans l'Humanité."As ideias, depois de terem sido determinadas individualmente pelas suas relações contraditórias, têm ainda necessidade de uma lei que as agrupe, as simbolize, as sistematize... Torna-se então necessário um último instrumento dialéctico; ora este instrumento só poderá ser uma lei de progressão, de classificação e de série; uma lei que abranja... a própria antinomia.Système des Contradictions.INTRODUÇÃOProudhon morreu há 120 anos (1). Influente em quase todos os autores dos fins do século passado e dos começos do presente, Proudhon é mais citado Économiques que conhecido, no entanto é minha convicção que o conhecimento da sua obra é indispensável para quem se debruce sobre a evolução das ideias políticas, sociais, económicas e até filosóficas dos últimos tempos. Não é nossa intenção proceder a uma análise completa da doutrina proudhoniana. O nosso trabalho é bem mais limitado pois só nos interessa a sua dialéctica e o tipo de relações com o social. Proudhon recebeu de Marx e sobretudo do marxismo oficial uma condenação severa. Poder-se-ia dizer, que esteve no index em grande parte, devido à célebre obra de Marx: A Miséria da Filosofia (1847), que tem como subtítulo: Resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon, e constitui uma crítica virulenta à importante obra de Proudhon: Sistema das Contradições Económicas (1846), que tem como Subtítulo : A Filosofia da Miséria. Marx acusa Proudhon de ser um pequeno burguês oscilando entre contradições inextricáveis e de nunca ter podido compreender o que é a dialéctica e a luta de classes. no Manifesto Comunista, publicado algumas semanas antes da Revolução de Fevereiro de 1848, o juízo de Marx sobre Proudhon torna-se ainda mais severo, Cataloga-o entre os socialistas burgueses e reaccionários. Estranho juízo este, se nos lembrarmos de que Proudhon foi o terror da burguesia francesa, a partir da sua eleição para a Assembleia Constituinte, a 8 de Junho de 1848, pelos operários de Paris.(2) Mas a posição de Marx em relação a Proudhon não foi sempre de crítica. Notemos que na sua juventude, após ter tido conhecimento da obra O que é a propriedade? (1840), Marx fala na "Rheinische Zeitung" de 16 de Outubro de 1842 "dos trabalhos tão penetrantes de Proudhon" e que, numa carta escrita na mesma época, se lhe refere considerando-o "o pensador mais notável do socialismo francês". Na Sagrada Família (obra colectiva escrita por Marx e Engels, 1844-45), Marx toma a defesa de Proudhon contra os seus críticos alemães, e chama-lhe o único proletário autêntico de todos os escritores socialistas. Diz Marx: "Proudhon não escreve só no interesse dos proletários, ele próprio é proletário, operário. A sua obra é uma manifesto científico do proletariado francês e tem assim uma grande importância histórica". Marx vai mais longe e também declara que: "Proudhon submete a base da economia nacional, a propriedade privada, a um primeiro exame sério, absoluto, ao mesmo tempo que científico. A obra de Proudhon: O que é a Propriedade? tem, para a economia nacional moderna, a mesma importância que a obra de Sieyés: O que é o Terceiro Estado? para a politica moderna."Muito haveria a dizer sobre a s relações de Marx e Proudhon, mas pensamos que não é o momento oportuno pois sairíamos do âmbito estrito do trabalho que é a questão da dialéctica.(3)A DIALÉCTICA E O SEU OBJECTOOpondo-se politicamente aos conservadores, aos liberais, aos republicanos e aos comunistas, Proudhon quer no entanto analisar as posições teóricas dos seus adversários (a teologia, a questão do Estado, a utopia) e opor um método de pensar que explique e torne verídicas as suas conclusões. Daí a importância declarada para Proudhon dum método intelectual que permita escapar às ciladas do dogmatismo. As suas conclusões não se compreendem a não ser referidas no quadro do seu pensamento: a dialéctica.(4)1. A DialécticaSabemos que Proudhon de 1840 a 1848 se lançou numa grande investigação onde foi ajudado por inúmeras leituras que foi fazendo. Sabemos que leu a Bíblia, Fourrier, Saint-Simon, Sismondi, Adam Smith, Ricardo, os economistas franceses mas também traduções ou fragmentos de Kant, Leibniz, Fichte, Feuerbach, Strauss, Hegel e outros.(5) O que temos no entanto que salientar é que se Proudhon lê todos estes autores não é para se submeter a uma escola, mas sempre para definir o seu próprio método, que no seu entender nem os teólogos, nem os intelectuais burgueses, nem os socialistas utópicos souberam construir.Já em 1840 quando Proudhon escreve O que é a propriedade? possui um método intelectual preciso.A sua teoria do conflito social impôe-se na sua experiência de operário onde Proudhon pôde viver todas as dificuldades do operário e do artesão face aos proprietários de capitais. Foi a partir desta experiência de trabalho que Proudhon teorizou a relação do capital e do trabalho. Nesta experiência, as fórmulas de Saint-Simon sobre a exploração do homem pelo homem no trabalho indicam a Proudhon a via na qual prossegue a análise do conflito socio-económico.A leitura de Kant forma um momento nesta evolução. Fora da teoria da moral na qual Proudhon voltará algumas vezes, a posição crítica e racionalista dos problemas vêm confirmar as sua intuições. Não esquecerá a lição kantiana não para por a questão clássica: O que é Deus? O que é a Propriedade ou o Estado? mas para perguntar: Donde vem a ideia de Deus? Como é gerada a propriedade? Como é que cremos nesse mito que é o Estado)(6)A leitura de Kant obriga Proudhon a responder ao problema das categorias mentais, à questão de saber se a dialéctica é própria do espírito humano da razão, ou se ela é uma dimensão objectiva da realidade. Proudhon recusa uma tal alternativa entre o racionalismo e o empirismo e do mesmo modo a alternativa do espiritualismo e materialismo. Parece-lhe essencial reconhecer a objectividade do que ele chama "as série reais", quer dizer as divisões, distinções objectivas e ordenadas e por outro lado, as "Séries ideais", quer dizer os sistemas de relações que o espírito apreende do real, mas que não são somente reflexos da realidade. pelas séries ideias, o espírito inventa, reconstrói a realidade, pode combinar relações que não existem na realidade. (7)Proudhon precisa que esta aquisição das "séries ideais", das categorias do entendimento e das estruturas lógicas, vêm da acção e particularmente do trabalho. É nesta acção que o homem experimenta as relações entre as coisas, corrige as suas ideias e inventa novas relações. A própria filosofia elaborou-se a partir do trabalho.(8)Temendo livremente e de maneira pessoal a filosofia kantiana, Proudhon lê Feuerbach e Hegel com a mesma distância crítica. De Feuerbach, retém a ideia, essencial na sua análise, da alienação, mas transpondo-a a outros objectos e, em particular, à crítica do Estado. Se para Feuerbach, a alienação a analisar é a qual o homem atribui a Deus o que lhe pertence como coisas particular, para Proudhon pelo contrário, é na formação do Capital que se reproduz concretamente esta alienação. Para além disso, Proudhon desconfia do que ele chama "a metafísica de Feuerbach" o humanismo segundo o qual a humanidade seria o lugar do sagrado: desconfia desta filosofia reconstruir um novo "misticismo".(9) O ser humano traz consigo próprio e necessariamente, a contradição.(10)A reflexão crítica sobre a obra de Hegel ocupa um lugar igualmente importante. é verdade que Proudhon não pôde ler a não ser traduções (visto não saber alemão) mas desde 1840 nota-se o seu interesse crítico pelo pensamento hegeliano, pela definição da dialéctica, pela tese que ele retomará, na sua própria versão, da identidade das categorias do real e das categorias do entendimento. Entretanto, desde as suas primeiras leituras Proudhon desconfia duma construção intelectual que lhe parece demasiado abstracta e que obedece apenas à sua própria lei.(11)Hegel não fazia então obra de ciência, mas de filosofia. A distância é, com efeito, considerável entre a sua dialéctica e a do pensador francês. Proudhon não reduz somente este esquema trinitário a ser um caso possível das relações dialécticas e não se propõe nunca reduzir uma realidade humana a esta única dialéctica, mas, mais ainda, desenvolve contra a noção de "síntese", a mais viva crítica. Proudhon nega com efeito - e esta negação tem um grande significado para toda a sua concepção política - que toda a dialéctica se complete numa síntese. Nega que os termos em contradição encontrem necessariamente a sua ultrapassagem e a sua conclusão num novo sistema. pelo contrário, Proudhon desconfia desta síntese ser uma representação destruidora do movimento, e eventualmente ser, na realidade humana, o momento do poder, o momento da opressão onde um Estado pretende sintetizar os contrário quando nesse momento os destrói.(12)Georges Gurvitch foi um dos principais comentadores de Proudhon e professor de Sociologia na Sorbonne que sublinhou o anti-hegelianismo de Proudhon.(13)A dialéctica proudhoniana é também original e pouco dogmática. É um método intelectual procedendo por proposição e contra-proposição como já Platão ensinava e prepara a conhecer as antinomias da realidade social (assim: monopólio e concorrência, em economia; autoridade e liberdade, nas relações sociais) a pensar menos os termos que as relações entre os termos, os seus conflitos e a sua transformação. Não se reduz a um modelo simples e sempre idêntico: deve ao contrário inventar modelos diversos de relações: antagónicos, conflituais, complementares, correspondentes à diversidade das antinomias reais.2. As Dialécticas SociaisA dialéctica não é somente um método de pensar, mas a característica própria das realidades sociais. Como o francês desenvolve longamente a análise socio-económica exposta no Sistema das Contradições Económicas, a realidade social é feita de múltiplas contradições cabendo à ciência social fazer o inventário. Algumas destas contradições são chamadas a revolverem-se num equilíbrio (o "valor constituído") outras devem pelo contrário subsistir pois participam no dinamismo económico (a antinomia do monopólio e da concorrência).(14) (15)Este carácter dialéctico da realidade social vem responder, segundo Proudhon, ao problema da natureza das relações sociais que não são nem assimiláveis a uma realidade física (materialismo) nem redutíveis a sistemas lógicos (idealismo). Será uma das obsessões de Proudhon responder a esta questão, constituir uma teoria que ponha em evidência a especifidade do social em oposição aos outros objectos do pensar. É a teoria que Proudhon propõe chamar "ideo-realismo" que no nosso entender é um termo infeliz pois é susceptível de causar mal entendidos.As relações sociais são, por assim dizer, reais e ideais. A relação social é por sua vez uma realidade e uma lógica ou, como diz Proudhon uma "ideia". O que se quer dizer com isto é que as dialécticas sociais não são trocas intelectuais, mas que as relações sociais são incessantemente portadoras duma lógica interna que lhe é constitutiva. São bem, neste sentido, realidade "dialécticas". Esta especificidade do social tem múltiplas consequências. Compreender-se-à, por exemplo, que as representações, as crenças, as ideologias, jogam na história funções importantes e por mecanismos particulares.(16) (17)Esta teoria dialéctica das relações sociais inclui uma concepção particular da sociedade. O acento é posto antes de tudo sobre a diversidade, sobre a pluralidade dos termos, dos sujeitos, dos grupos em presença. São as antinomias, os equilíbrios e as tensões entre os diversos elementos, que asseguram o movimento, os dinamismos, as inovações. Esta observação será fundamental nas proporções anarquistas e federalistas.Mais ainda, esta concepção "fluídica" dos termos sociais que os torna necessários à vitalidade social, condena toda a representação autoritária, absolutista, governamental. Aos olhos de Proudhon, a concepção dialéctica do social, fazendo de todos os termos e das suas relações dinâmicas as causas reais da vida colectiva, condena as estruturas opressivas, assim como denuncia as alienações, e funda uma concepção igualitária.Finalmente, falta dizer, que esta dialéctica não conduz, de modo algum, a uma redução do indivíduo, a uma negação da acção e da inovação individual. Proudhon, com efeito, resiste obstinadamente a toda a tentação de atribuir à sociedade uma nova transcendência que se opusesse às iniciativas individuais. Do mesmo modo que a pluralidade dos grupos participa na vitalidade do social, assim, também as liberdade individuais e, em certa medida, as tensões e os compromissos entre as pessoas participam do dinamismo social, tendo em conta que isto aconteça numa sociedade mutualista.Não é para admirar que esta dialéctica, inspirada em certa medida na filosofia alemã, mas, na realidade, em desacordo com cada uma das suas origens, tenha sido mal recebida e mal compreendida. Alexandre Herzen, que, da Rússia, seguia com paixão a evolução do socialismo francês, escrevia em 1845, dando conta deste facto, ao receber o livro Da Criação da Ordem na Humanidade (18) fazendo de Proudhon um "pur hégelien" e ajuizando que Hegel "a façonné Proudhon à son image". É também a Hegel que Marx aproximava Proudhon, mas, ao contrário de Herzen, para concluir que Proudhon não tinha realmente compreendido a dialéctica hegeliana. Em 1865, lembrando-se das longas discussões parisienses, Marx atribuir-se-à o papel de professor em hegelianismo junto de Proudhon.(19)Com efeito, Proudhon apesar do seu interesse por Hegel foi sempre obstinadamente rebelde à concepção hegeliana da dialéctica à qual critica, não somente a sua abstracção, mas também as suas conclusões políticas conservadoras. A síntese de Hegel, pretende ultrapassar a tese a antítese absorvendo-as é "governamental"; conduz à "prepotência do estado".(20)É, ao contrário, de Feuerbach que Karl Grün aproxima Proudhon até fazer dele o "Feuerbach francês". Grün fazia de Fourier o "Hegel francês". Mas, como vimos, se Proudhon se enriqueceu com a leitura de Feuerbach e de Hegel não deixou de seguir o seu próprio caminho.3 - A Realidade do SocialUma das dificuldades que podem encontrar os contemporâneos de Proudhon para compreender esta dialéctica deve-se ao facto do pensador francês designar uma realidade que não lhes era familiar. Esperaram que Proudhon tomasse partido sobre o problema da existência de Deus, que propusesse uma nova filosofia, ou ainda, que construísse uma nova teoria socialista. Ora, nenhum destes objectivos é o seu e se Proudhon se interroga sobre Deus e sobre a filosofia, é em função duma outra interrogação sustentada pelas realidade sociais.A tese fundamental de Proudhon não é somente que as relações sociais são mais importantes que as estruturas políticas, mas que os acontecimentos e as mudanças sociais e, em primeiro lugar, as relações sociais do trabalho, têm a sua realidade e o seu dinamismo próprio. (21)A sociedade não é uma abstracção, mas um ser colectivo que possui as suas características particulares. O facto de "la force collective"(22) vem claramente confirmar esta "realité" do social para além dos indivíduos que o compõem, pois, como o diz Proudhon mais de uma vez, só o facto do agrupamento, da organização das pessoas, engendra uma força própria.(23)Para exprimir esta especificidade do social, a dialéctica é um instrumento "merveilheusement commode" para reatar os factos, para pôr em evidência relações entre elementos anteriormente isolados.(24)Assim, a dialéctica aprenderá a distinguir a multiplicidade dos elementos que compõem a vida colectiva, aprenderá a soltar todas as contradições e as antinomias cujas tensões, longe de serem uma ameaça para as relações sociais, são uma garantia da sua vitalidade e da sua liberdade, tendo em conta que elas encontrem o seu equilíbrio dinâmico.(25) Esta realidade social comporta dialécticas que são tão gerais que podemos tomá-las como permanentes. Em particular o trabalho está no caminho de modificações permanente: o trabalho não é organizado, "il s'organize"(26) .Esta organização do trabalho realiza-se, em particular, através dos múltiplos contratos que os produtores decidem e executam entre eles. Por estes contratos, os particulares e as empresas comprometem-se em função dos seus interesses e em função dos constrangimentos económicos sem abandonar a sua iniciativa. Das múltiplas decisões recíprocas surge um direito económico, verdadeiro direito social que se opõe radicalmente ao direito político. Claro que este direito social está em devir, está longe de estar realizado no regime proprietário mas tende a formular-se através das múltiplas relações da produção e do comércio. É este direito que se realiza na associação operária e que virá a ser princípio fundamental e regulador na democracia mutualista.Este conjunto de análises sobre o ser colectivo, sobre a força colectiva, inscreve-se numa linha intelectual que, de Saint-Simon e Marx e Durkheim, em particular, forja os princípios gerais da Sociologia. Com efeito, desde as suas primeiras obras, em que faz da propriedade uma relação social entre o capitalista e o produtor de valores, explicando a apropriação económica pela apropriação da força colectiva, Proudhon inaugurava com Saint-Simon uma nova ciência sustentada, não sobre a produção e a circulação das riquezas, mas sobre as relações sociais constituídas na produção e nas trocas.Desta maneira não é surpreendente que Marx tenha retomado palavra por palavra algumas destas análises proudhonianas sobre a força colectiva ou sobre a questão do Estado. É descrevendo as gerais da "coopération" que Marx encontra, na obra O Capital, o raciocínio de Proudhon. O efeito da cooperação, quer dizer da reunião e da organização de numerosos operários, é de criar uma força colectiva. E, conforme à análise proudhoniana, a produção de valor correspondente a esta força não se realiza a não ser para o capitalista.(27)Mais ainda; quaisquer que sejam as múltiplas diferenças em relação à análise das relações entre o Estado e a sociedade civil,(28) Marx encontra precisamente as conclusões de Proudhon e, particularmente, sobre o exemplo do Estado francês.(29) (30)Proudhon havia incessantemente evocado esta dialéctica histórica entre as forças populares e o Estado paralisado.(31)Quanto ao princípio geral de Proudhon relativo à realidade do social, poderemos encontrar a formulação, sob formas diversas, em todos os grandes teóricos da Sociologia. Durkheim fez dele um dos grandes princípios do espaço sociológico.(32)
CONCLUSÃO
Com toda a justiça Georges Gurvitch designava Proudhon, um dos fundadores da Sociologia(33). Para além dos princípios gerais sobre os quais se baseia, Proudhon traz-nos múltiplos elementos de reflexão aos diversos domínios da Sociologia - Sociologia do trabalho, das classes sociais, das religiões e das ideologias. Num domínio tão particular como é o da Sociologia do direito social, (34) Proudhon abriu uma direcção de pensamento em que a fecundidade está longe de estar hoje em dia esgotada.
Notas:
(1) Para ter conhecimento da biografia de Proudhon aconselho a pequena mas lúcida obra: Gurvitch, Georges - Proudhon, trad. de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho, ed.70, Biblioteca Básica de Filosofia, Lisboa, 1983, ou ainda a obra de Halévy, Daniel - La Vie de Proudhon 1809-1847, Édition Stock, Paris, 1948.(2) Sobre esta parte da vida de Proudhon podemos ler o seguinte na obra de Georges Gurvitch Proudhon e Marx, ed. Presença, Lisboa, 1980, pág.13. "Desde a sua entrada para a Assembleia Nacional, notou a curiosidade geral, curiosidade hostil, que a sua pessoa suscitava na maioria dos seus colegas. "Parece que se espantam" escreveu ironicamente a um amigo "que eu não tenha garras ou chifres." Ora o seu discurso de 31 de Julho mostraria ao público até onde podia ser violento. O resultado foi imediato. Aqui está o que o próprio Proudhon escreveu nas Confissões. "A partir de 31 de Julho, tornei-me, segundo a expressão de um jornalista, o homem-terror. Não creio que alguma ves tenha havido um caso semelhante."(3) De qualquer das maneiras não quero deixar de referir alguma da bibliografia disponível que trata das relações entre os dois pensadores.- ANSART, Pierre - Marx et l'Anarchismi, essai sur les sociologies de Sainte-Simon, Proudhon et Marx, P.U.F., paris, 1969.- GURVITCH, Georges - La Vocation Actuelle de la Sociologie, 2 vols., P.U.F., Paris, 1969- GURVITCH, Georges - Proudhon et Marx, ed.Presença, Lisboa, 1980.- HAUBTMANN, Pierre - Proudhon, Marx et la Pensée Allemande, P.U.G., Grenoble, 1981.- MAITRON, James - Le Mouvement Anarchiste en France, 2 vols., Librairie François Maspero, Paris, 1975.(4) Entramos finalmente no âmago do pensamento de Proudhon. A dialéctica torna-se assim a melhor maneira de mostrar a sua filosofia. Desta maneira Proudhon enquadra-se perfeitamente na tradição filosófica ocidental.(5) Fiamo-nos nas palavras do próprio Proudhon e na de alguns dos seus principais comentadores como por exemplo Pierre Ansart, Pierre Haubtmann e Georges Gurvitch.(6) HAUBTMANN, Pierre - Proudhon, Marx et la Pensée Allemande, pp.23-24(7) PROUDHON - De la Création de l'Ordre dans l'Humanité, Marcel Riviére, Éditeur, Paris, pp. 176-177.(8) Ibidem, pág.119.(9) PROUDHON - Systéme des Contradictions Économiques, Tome I, pág.395.(10)Ibidem, pág.368(11)HAUBTMANN, Pierre - Proudhon, Marx et la Pensée Allemande, pp.26-27(12)PROUDHON - De la Justice dans la Révolution et dans l'Église, Tome II, pág.155.(13)GURVITCH, Georges - Dialectique et Sociologie, pág.129-131.(14)Ibidem, pág.131-134.(15)Proudhon na sua Filosofia da Miséria - Sistema das Contradições Económicas aborda esta mesma questão.PROUDHON - Systéme des Contradictions Économiques, Tome I, pág.134-136.Proudhon vai também dizer na Théorie de l'Impôt, Marcel Riviére Éditeur, pág.239, reforçando o que se disse: "Le monde, la société, l'homme sont composés d'éléments irréductibles, des principes antithétiques et de forces antagonistes."PROUDHON - De la Justice dans la Révolution et dans l'Église, 6.étude, Tome III, pág.69.(17)Ver ainda - PROUDHON - De la Capacité Politique Des Classes Ouvrières, Pag.111.(18)HERZEN, A. - JOURNAL, Tome I, pp.270-271, citado por Pierre Haubtmann, Proudhon, Marx et la Pensée Allemande, pág.42(19)MARX, KARL - Misère de la Philosophie, Costes, pp.216-217.(20)PROUDHON - La Guerre et la Paix, pág.52.(21)PROUDHON - Confessions d'un Revolutionnaire, Marcel Rivière Èditeur, pág.217.(22)Proudhon fala em forças colectivas, Marx falará em forças produtivas.(23)PROUDHON - De la Justice dans la Révolution et dans l'Église, 6.étude, Tome II, pág.257-258.(24)"Sans qu'il soit besoin de suivre Hegel dans son infructueuse tentaive de construire le monde des realités avec dans de prétendus a priori de la raison, on peut hardiment soutenir, ce me semble, que sa logique est merveilleusement commode pour rendre raison de certains faits que nos ne savions auparavant considérer que comme les inconvénients, les abus, les extrêmes de certain autres." Crata de 16 de Dezembro de 1846, Correspondance, Marcel Rivière éditeur, Tome II, pp. 231-232. Tratava-se duma carta de Proudhon a M.Tissot. (M.Tissot era o tradutor francês de Kant.)(25)PROUDHON - Confessions d'un Revolutionnaire, Marcel Rivière Èditeur, pág.249-250.(26)PROUDHON - Systéme des Contradictions Économiques, Tome I, pág.75.(27)"Quand plusieurs travailleurs fonctionnent ensemble en vue d'un but commun dans le même procès de production ou dans des procès différents mais connexes, leur travail prend la forme coopérative.De même que la force d'attaque d'un escadron de cavalerie ou de la force de résistance d'um régiment d'infanterie diffère essentiellement de la somme des force individuelle, déployées isolément par chacun des cavaliers ou fantassins, de même da somme des forces mécaniques d'ouvriers isolés diffère de la de la force mécanique qui se développe dès qu'ils fonctionnent conjointement et simultanément dans une même opération indivise, qu'il s'agisse par example de soulever un fardeau, de tourner une manivelle ou d'écarter un obstacle. Dans de telles circonstances, le résultat du travail commun ne pourrait être obtenu par le travail individuel, ou ne le serait que'après um long laps de temps ou sur une échelle tout à fait résuite. Il s'agit non seulment d'augmenter les forces productives individuelles, mais de créer par le moyen de la coopération une force nouvelle ne fonctionnant que comme force collective."MARX, KARL - Le Capital, Éditions Sociales, livre I, 1950, pág.19.(28)Que como se sabe é a questão capital que originou uma maior oposição entre marxistas e anarquistas nomeadamente na I Internacional através de Marx e Bakunine respectivamente.(29)Apesar de Marx ter apoiado a Comuna de 1871 mas só depois do seu desencadear, nunca precisou (ou nunca quis precisar...) a sua origem proudhoniana.(30)MARX, Karl - Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Èditions Sociales, Paris, 1969, pp.124-125.(31)PROUDHON- Système des Contradictions Économiques, Tome I, pp.166-167.(32)"(...) la société n'est pas une simple somme d'individus, mais le système par leur association représente une réalité spécifique qui a ses caractères propres. Sans doute, il ne peut rien se produire de colectif si des consciences particulières ne sont pas donnés; mais cette condition nécessaire n'est pas suffisante. Il faut encore que ces consciences soient associées, combinées, et combinées d'une certaine manière; c'est de cette combinaison que résulte la vie sociale et, par suite, c'est cette combinaison qui l'explique. En s'agrégeant, en se pénétrant, en se fusionnant, les âmes individuelles donnet naissance à un être, psychique si l'on veut, mais, constitue une individualité psychique d'un genre nouveau... Le groupe pense, sent, agit tout autrement que ne feraient ses membres, s'ils étaient isolés."DURKHEIM, Les Règles de la Méthode Sociologique, P.U.F., Paris, 1949, pág.103.(33)GURVITCH, Georges - Les Fondateurs Français de la Sociologie Contemporaine: Saint-Simon et P.J.Proudhon, Centre de Documentation Universitaire, Paris, 1955.(34)Ver a este propósito a 3ª parte da tese de doutouramento de Gurvitch, L'Idée de Droit Sociale, Histoire Doctrinale depuis de XVII Siècle jusqu'à la fin du XIX Siècle, Librairie Recueil Sirey, Paris, 1931.

Saturday, December 30, 2006

A ACTUALIDADE DE PROUDHON

Pierre-Joseph Proudhon é certamente o pensador social mais eclético e o mais profundo que a França e o mundo já forneceu… Adorado por uns, desprezado por outros, quase sempre recuperado, a sua obra não pode causar indiferença. É verdade que o pensamento proudhoniano atacou todos os aspectos da vida social: política, económica, sociológica e jurídica. Esta propensão à universalidade, amplificada por uma real acuidade analítica, atribuem-lhe um tom e uma dimensão de actualidade da qual ele nunca se separou.Esta actualidade do pensamento proudhoniano coloca a sua força na sua faculdade para fornecer respostas concretas e claras aos problemas que assolam a sociedade desigualitária. “As ideias proudhonianas, malditas e anatemizadas da frente, empuradas de viva força, filtrarão cada vez mais e introduzir-se-ão ao viés na sociedade moderna(…). A ideia prática, ele tem-na (…). Ela triunfará talvez cem anos depois da sua morte” (1). É o que Saint-Beuvre escreveria em 1865, nas vésperas do desaparecimento de Proudhon. Bernstein, acusado pelos amigos marxistas de querer restituir vida a Proudhon, não se declarava: “Não sou eu que ressuscito o autor de A Capacidade política das classes operárias, mas a realidade de hoje em dia” (2). Em 1966, Georges Gurvitch, sociólogo, actor e testemunha da Revolução russa, constatava: “Cem anos depois da sua morte, a actualidade de Proudhon impõe-se tanto a Leste como a Oeste” (3). Algumas destas referências não teriam mais, ao lado de inúmeras obras que lhe são consagradas que uma coloração idolatrária se a grande parte dos problemas e das soluções provocadas pelas crises na França, na Europa, no terceiro mundo e actualmente nos países de Este, não se colocassem em termos e em temas fundamentalmente proudhonianos.Um dos traços essenciais do pensamento de Proudhon a saber, o seu refúgio do dogmatismo tanto económico como político, induzindo a abertura ao diálogo real, a procura do outro (social e pessoal) como protagonista… revela um pluralismo ideo-realista oposto a todo o totalitarismo ou integrismo instituído em dogma. Formalmente, isso constitui um trunfo essencial!Correlativamente a este pluralismo ideo-realista, o federalismo autogestionário que desenvolve apoia-se na diversidade antinómica e solidária que funde a realidade social, económica, política e pedagógica. Especificar e tornar autónoma, coordenar e solidarizar, para federar e tornar “unidos”, eis expostos os movimentos antinómicos e a dinâmica do “método sérial” utilizado por Proudhon.Compreende-se então de que modo as estruturas que ele propõe são visionárias e, de algum modo, bem adaptadas. Na hora em que todos os problemas que se colocam são em termos de equílibrio - dinâmico e susceptível de evolução – entre as forças centrífugas de liberdade e das formas centrípedas de ordem, todas as respostas avançadas por Proudhon, nos domínios sociológicos tão diversos e estreitamente encaixados parecem incontornáveis. Este aspecto fundamentalmente do pensamento libertador de Proudhon, ajusta-se à superioridade formal que lhe confere a sua rejeição do “dogmatismo religioso”, atribuído à sua obra e ao anarquismo anti-capitalista e anti-estadista uma actualidade tanto conceptual como prática.ANTI-ESTADISMO E SOCIEDADE “POLÍTICA”Proudhon é obrigado a negar simultaneamente “duas coisas idênticas: a exploração do capital e a opressão do Estado”. Para ele o que se designa na política autoridade é análogo, equivalente ao que se chama em economia política, propriedade (…) (4). A negação de uma arrasta simultaneamente a outra. O socialismo, ciência e protesto sociais, é ao mesmo tempo protesto contra o Poder e o Capital! A “democracia”, segundo Proudhon, é a “abolição de todos os poderes”, desligada da sociedade para dominar esta mesma sociedade. “A exploração do homem pelo homem é o roubo, o governo do homem pelo homem é a servidão.” (5)Demonstrou por uma análise detalhada de todos os mecanismos que o Estado é um instrumento de opressão. No seu fundamento social o Estado é despótico, absolutista e opressivo, do mesmo modo que ele é nas suas consequências sociais usurpador e explorador. A centralização hierárquica dos poderes públicos, força coerciva, é utilizada por “uma gente oficial contra a sociedade real” (6). O que Proudhon nega no Estado-usurpador, é a alienação do poder social e a “mais-valia” estadual.O Estado-servidor dos democratas consiste em “mudar o pessoal do governo” e a “tomar o poder das mãos dos seus mestres sem mudar nada nas estruturas” (7). Os termos permanecem efectivamente imutáveis. O poder “colectivo” permanece alienada e a “autoridade extrema e arbitrária” toma o lugar da “autoridade imanente e intransferível dos cidadãos livres e dos grupos sociais autónomos”, constituintes da sociedade pluralista e real. Daí resulta a noção de interesse público, distinto de interesse popular. Uma casta burocrática cria-se então e, com ela, chegam o despotismo e a corrupção. “Então aparece nos governos mais populares a alienação tipo do poder social: a gente oficial que explora a sociedade real.” (8)“O socialismo governamentalista, diz-nos Proudhon, pretende empregar o governamentalismo contra o capitalismo (…), conservando o poder como ele o tinha tomado (…), quer fazer parar a alienação capitalista pela alienação estadista, atacando o abuso e o absolutismo pelo absolutismo. Falta apanhar a conexão íntima do governamentalismo e do capitalismo, os democratas socialistas mais convencidos arriscam-se a conduzir os povos emancipados do capital no impasse do estadismo. Ora, entre a propriedade-roubo, o capitalismo explorador, o Estado usurpador e o governamentalismo explorando, não há uma diferença de natureza mas de poder.” (9) Com quase setenta anos de avanço, Proudhon assinalava desde já perfeitamente o desvio prático do marxismo-leninismo e colocava-se cauteloso contra a provável deriva conceptual do comunismo autoritário e estadual.Para ele, “mais autoridade, nem no Estado nem no dinheiro” tornava-se na palavra de ordem social libertadora garantida contra todas os desvios, abusos e impasses inerentes ao socialismo estadista. Precisava a contradição profunda minando o colectivismo autoritário desde a sua origem: “Vós demandais ao governo abolir a exploração do homem pelo homem. Não duvidais que o Estado é uma nova forma de exploração (…) e o governamentalismo uma concentração de poderes que matam “ (10).Todos os partidos que se afeiçoam ao poder, enquanto poder, e quaisquer que sejam as suas origens, não são mais que variedades do absolutismo. “Em vez de ensinar o povo a autogerir-se, a auto-administrar-se, (…) exigem-lhe o poder e usurpam a sua força social: (11). O povo, uma vez deposto do poder, não pode mais fazer frente às invasões deste poder. É a eterna mistificação da qual os proletariados abusam…Antítese do federalismo, o centralismo unitário é totalitário, concentracionário e uniformisante. Resulta da absorção e da integração forçada dos grupos naturais, funcionais ou geográficos, numa “autoridade central, única e indivisível”. O comunismo autoritário – o socialismo estadista – não mudou em nada o funcionamento de instituição despótica. Apoiou-a no príncipio da “soberania popular”, mas é a boa e a bem da autoridade que lhe assegura a sua subsistência!Organizado assim como instrumento de exploração e de dominação, o Estado de origem proletária oprime tudo como o Estado fascista! Proudhon recusa no Estado, “a força justificando a força, o antagonismo primário utilizado não como instrumento de produção e de liberdade social, mas como instrumento de dominação e de destruição de toda a autonomia” (12). Os grupos sociais são supostos “naturalmente desiguais, antagonistas e na impossibilidade de agir por eles próprios” (13). O Estado despótico coloca-se como instrumento de arbitragem. Tem “por príncipio a necessidade, através da força, como objectivo impedir a revolta pela força ” (14).Proudhon deduz mesmo que, quando toma a sua origem numa revolução popular, o governo é por essa natureza contra-revolucionário. Politicamente e juridicamente, a força coerciva do Estado torna-se sujeição pública e “razão de Estado”. Justificação da razão do Estado, a religião da força conduz a uma “teoria de arbitragem e do fatalismo” e a uma prática impondo como dogma “uma hiérarquia eterna” (15). O segredo do fatalismo político está todo contido nestes três termos: o príncipio de fatalidade e o príncipio de antagonismo tomado como base social, e a razão de Estado tomada como lei do governo. E, como explica Proudhon, assiste-se à substituição de homens por outros homens, de ídolos por outros ídolos. A classe trabalhadora, que “se impõe ao capital, submete-se graças à inépcia dos seus dirigentes à conservação da autoridade” (16). O governo não está lá para servir o povo, mas este último está lá para servir os seus governantes!UMA VIA PARA O SÉCULO XXIProudhon teria dito tudo contra o perigo de uma democracia autoritária, declarava Emmanuel Mounnier (17). Gurvitch apresenta-o como o primeiro inspirador dos soviéticos russos criados nos primeiros tempos. Acrescenta que o poder destes sovietes não durou mais que alguns meses e foi suprimido sob a influência conjugada de Trosky e de Estaline… com a benção de Lenine (18). Proudhon é apresentado como o fundador do sindicalismo, e prefigura nas suas obras o que será a Carta de Amiens defendendo nomeadamente o príncipio essencial da autonomia operária (19).Unir esta actualidade teórica e prática indiscutível à realidade sociológica dos anos 1990 não representa em si um grande esforço, uma dificuldade.É simplesmente o fim lógico dos acontecimentos e situações que, sob a forma de uma vaga de fundo, balançava o comunismo autoritário dos seus pontos de ancoragem. A Leste como a Oeste, as ideologias autoritárias desacreditadas estão neste ponto sufocadas pois elas não pareciam dar mais a ilusão do possível. Deixamos aos marxistas cómicos a preocupação de nos tentar explicar à força de dialéctica mediatizada que o que se passa neste momento no interior do bloco comunista representa uma “ultrapassagem integrada do próprio marxismo” (17). Aos intelectuais e politólogos ocidentais (ainda completamente descontaminados) abandonamos o terreno da literatura do arrependimento.Consideramos que este comunismo que agoniza a Leste não tem grande coisa a ver com o comunismo original, libertário. Os que ergueram os regimes estadistas, burocráticos e ditatoriais, desde Janeiro de 1918, fizeram-no conscientemente. Tiveram a vontade de impôr ao povo o seu próprio sistema servindo-se do aparelho de repressão, da força brutal… Desde esse momento, a revolução em termos ideológicos e de um ponto de vista ético, estava confiscada, senão mesmo morta! O absolutismo marxista-leninista reunia-se aos feitos do absolutismo czarista. Os novos “czares vermelhos” validavam a posteriori pelos seus actos as premonições proudhonianas sobre a incapacidade estadista em manter um percurso revolucionário. O estalinismo tão criticado – com justa razão – não faz mais que reforçar a repressão desde logo bem empenhada e erguerá a “polícia ideológica” no lugar do funcionário fora de horas…Todos estes povos que conseguiram sofrer durante décadas esta prevaricação ideológica, este esmagamento sociológico, esta vida quotidiana ao abatimento, com um formidável medo da opressão, estes povos portanto, vomitam o comunismo autoritário. Por momentos, viram-se em direcção à sociedade de consumo ocidental que parece representar a liberdade. Mas o liberalismo não é a liberdade, quando muito “a do lobo no rebanho”.O caminho traçado por Proudhon, com quase século e meio, enaltecendo a autogestão, o federalismo, o auxílio mútuo e o pluralismo parece bem ser o único que tinha alguma hipótese de nos fazer sair da rotina. Os jovens e os trabalhadores a Leste, que desejam rejeitar tanto o capitalismo do Estado como o capitalismo simplesmente, não se enganarão. As sociedades injustas, opressivas… já as conhecem! Então Proudhon pode reaparecer diante da cena social… lugar que só tinha deixado devido à obstinação hegemónica dos autoritários reunidos. Neste contexto, é verdade, Pierre-Joseph Proudhon é de uma ardente actualidade.No momento de concluir, duas ideias vêm-me ao espírito. A primeira faz-me vislumbrar Proudhon não como um visionário, um profeta, menos ainda como um homem munido de uma presciência… Desenvolveu um sistema de pensamento rigoroso, científico, alternada por uma constante tomada na ordem do real, do quotidiano. Neste sentido o socialismo libertário de Proudhon é científico sem que contudo este qualificativo, no meu espírito, lhe atribue qualquer virtude especial. Não, mas simplesmente, parece-me honesto dar a Proudhon e aos anarquistas que o seguiram (Bakounine, Kropotkine, Malatesta, Pelloutier e muitos outros…) esta justiça que as ideias que eles defendem só estão em perfeita harmonia com as aspirações sociais profundas dos povos que desejam libertar-se.A segunda, na linha directa da primeira, conduz a interrogar-me sobre o futuro próximo: o XXI século não se abre para uma escolha por sua vez desesperada e clara, a barbaridade ou… o socialismo libertário de Proudhon e dos anarquistas? A resposta pertence aos povos que se libertam da mesma maneira que pertence a cada um de nós… Então, dedicar-se à tarefa hoje em dia é talvez redescobrir os pensadores anarquistas (incluindo e em primeiro lugar Proudhon) e integrar todos os seus contributos nas nossas lutas actuais.NOTAS1- Jean Bancal - Proudhon, pluralisme et autogestion, ed.Aubier-Montaigne, Paris, 1970, tomo II, p.217.2 - Id., ibid., p.216.3 - Jacques Langlois - Défense et actualité de Proudhon, Petite Bibliothèque Payot, Paris, 1976, p.37.4 - P.-J. Proudhon - Les Mélanges (título dado a três volumes da obra em vinte e seis volumes de Proudhon), ed.Lacroix, Bruxelles, 1867-1870, tomo III, p.53. As “Les Mélanges” representam uma recolha de artigos aparecidos no Representante do povo, o Povo, a Voz do povo, o Povo (1850), assinados por Proudhon.5 - P.-J. Proudhon - Les Confessions d`un révolutionnaire pour servir à l`histoire de la Révolution de février, ed.Garnier, 1849, cap.2, p.34.6 - Id., ibid.7 - Les Mélanges, op.cit., tomo III, p.21 e seguintes.8 - Ibid.9 - Les Confessions, op.cit., cap.15.10 - Les Mélanges, op.cit., tomo III, p.77, in La Voix du peuple, 11 Janeiro 1850.11 - Les Confessions, op.cit., cap.1, p.34.12 - Proudhon - pluralisme et autogestion, op.cit., tomo I, p.226.13 - Ibid.14 - Les Confessions, op.cit.15 - P.-J. Proudon - de la Justice, “L`Etat”, 2ª Edição, Bruxelas 1860, pp.183-186.16 - Les Mélanges, op.cit., tomo III, p.11.17 - Emmanuel Mounier - Communisme, anarchie et personalisme, ed. Du Seuil, Paris, 1966, p.138 e seguintes.18 - Proudhon - pluralisme et autogestion, op.cit., tomo II, p.225.19 - Daniel Guérin - L`Anarchisme, éd.Gallimard, coll. Idées, Paris, 1965